Acórdão nº 340/08 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Junho de 2008

Magistrado ResponsávelCons. M
Data da Resolução19 de Junho de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 340/2008 Processo n.º 447/08 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

O Ministério Público deduziu acusação contra A., imputando-lhe a autoria material, em concurso real e na forma consumada, de: (i) um crime de associação de auxílio à imigração ilegal, previsto e punido pelo artigo 135.º, n.ºs 1 e 3; (ii) um crime de angariação de mão-de-obra ilegal, previsto e punido pelo artigo 136.º-A; (iii) 198 crimes de auxílio à imigração ilegal, previstos e punidos pelo artigo 134.º-A, n.º 2, todos do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro; (iv) 198 crimes de falsificação de documento, previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.ºs 1 e 3; (v) 24 crimes de corrupção activa, previstos e punidos pelo artigo 374.º, n.º 1; (vi) 17 crimes de lenocínio, previstos e punidos pelo artigo 170.º, n.º 2; (vii) 7 crimes de tráfico de influência, previstos e punidos pelo artigo 335.º; (viii) 4 crimes de burla, previstos e punidos pelo artigo 217.º; (ix) um crime de descaminho, previsto e punido pelo artigo 355.º; e (x) um crime de extorsão, previsto e punido pelo artigo 223.º, todos do Código Penal.

A referida arguida apresentou requerimento de abertura de instrução no qual, além do mais, arguiu: (i) a nulidade das escutas telefónicas, por alegada violação do disposto nos artigos 187.º e 188.º do Código de Processo Penal (CPP) e 32.º, n.ºs 1 e 8, 43.º, n.ºs 1 e 4, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP); e (ii) a inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 134.º-A, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, e a inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto e dos artigos 135.º e 136.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, por violação do artigo 165.º, n.º s 1, alíneas b) e c), e 2, da CRP.

Pela decisão instrutória do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, de 1 de Agosto de 2007, foi desatendida quer a arguição da nulidade das escutas telefónicas quer a arguição de inconstitucionalidade dos artigos 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002 e 134.º-A, n.º 2, 135.º e 136.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 34/2003, tendo, a propósito desta questão de inconstitucionalidade, sido tecidas as seguintes considerações:

“Os arguidos B., C. e A. vêm ainda invocar:

– a inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 134.º-A, n.º 2, do [Decreto-Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, por ofensa do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, alegando, para tanto, que a alteração introduzida no Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, não respeitou a Lei de Autorização Legislativa n.º 22/2002, de 21 de Agosto, a qual não tinha o sentido nem a extensão de autorizar o Governo a incriminar o auxílio à permanência ilegal de estrangeiros em território nacional;

– a inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e do artigo 136.º, n.º 2, do [Decreto-Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, por violação do artigo 165.º, n.º s 1, alíneas b) e c), e 2, da Constituição da República Portuguesa;

– a inconstitucionalidade orgânica do artigo 2.º, alínea o), da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, e do artigo 135.º do [Decreto-Lei n.º 244/98, na redacção introduzida pelo] Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, por violação do artigo 165.º, n.ºs 1, alíneas b) e c), e 2, da Constituição da República Portuguesa;

– a alínea o) da predita Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, apenas autorizara o Governo a criminalizar o trânsito ilegal de estrangeiros em Portugal;

– a inconstitucionalidade da alínea o) do artigo 2.º da Lei n.º 22/2002, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, por não definir, com rigor, o sentido da autorização concedida ao Governo.

Cumpre decidir.

O n.º 2 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa prescreve que «as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada».

A Lei de Autorização n.º 22/2002, de 21 de Agosto, observa todos estes requisitos.

Desde logo, e quanto ao objecto da autorização, o artigo 1.º da referida Lei diz que «É concedida ao Governo autorização para alterar o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros em território nacional».

O sentido e extensão, ou seja, os princípios orientadores do Governo na emanação do decreto-lei autorizado sobre a imigração, vêm definidos no seu artigo 2.º: aí indica-se o conteúdo e as questões materiais sobre que irá incidir o decreto-lei autorizado. Entre elas está o de «aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração, criando novos tipos criminais (…)» – cf. a alínea o) do art. 2.º

Os arguidos entendem que, pelo facto de na referida alínea o) se dizer, expressamente, que se deverá criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional, não fora o Governo autorizado a incriminar o auxílio à permanência ilegal, e, ao tê-lo feito, o decreto-lei autorizado, n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, excedeu os limites da lei de autorização.

Mas não é assim.

A mencionada alínea o) autorizou o Governo a «aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração criando novos tipos criminais (…)» – realce nosso.

A lei de autorização tem de ser interpretada no contexto em que foi concedida, sem esquecer que é ao Governo que compete a iniciativa legislativa da autorização. Não é o Parlamento que, de motu proprio, concede a autorização.

No artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, estabelece-se que «O presente diploma transpõe para a ordem jurídica interna a (…) Directiva n.º 2002/90/CE, do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares».

O artigo 1.º da referida Directiva prescreve que «1 – Os Estados-Membros devem adoptar sanções adequadas: (…) b) Contra quem, com fins lucrativos, auxilie intencionalmente uma pessoa que não seja nacional de um Estado-Membro a permanecer no território de um Estado-Membro, em infracção da legislação aplicável nesse Estado em matéria de residência de estrangeiros» – sublinhado nosso.

Ora, se o legislador pretendeu aplicar, na ordem jurídica interna, a disciplina da referida Directiva, tinha que alterar, em conformidade, o regime previsto no Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, o qual não prescrevia quaisquer sanções contra quem, com fins lucrativos, auxiliasse, intencionalmente, uma pessoa que não fosse nacional de um Estado-Membro a permanecer no território de um Estado-Membro.

Com efeito, no regime anterior, apenas se previa e punia o auxílio à entrada ilegal de cidadãos estrangeiros, fosse ele com ou sem intenção lucrativa – cf. o artigo 134.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto.

Não faria qualquer sentido que o legislador, querendo transpor para a ordem jurídica interna a predita Directiva, viesse, afinal, criminalizar, apenas, o auxílio ao «trânsito» ilegal, como pretendem os arguidos.

Daí que a Assembleia da República, através da Lei n.º 22/2002, de 21 de Agosto, expressamente, como dela consta, tivesse autorizado o Governo a alterar o regime que regula a permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional, previsto no Decreto-Lei n.º 244/98, de 8 de Agosto – cf. o artigo 1.º

E, no artigo 2.º, alínea o), diz, expressamente, que a lei tem o sentido e a extensão de autorizar o Governo a «aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração, criando novos tipos criminais, designadamente, no sentido de criminalizar o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional e agravar as medidas das penas aplicáveis» – realce nosso.

Se a Assembleia da República pretendesse autorizar o Governo a incriminar apenas o auxílio ao «trânsito» ilegal de estrangeiros em Portugal, devia, então, ter dito que autorizava o Governo a «aperfeiçoar o regime sancionatório das infracções criminais associadas ao fenómeno da imigração, criminalizando o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em território nacional e agravar as medidas das penas aplicáveis».

Se esta última hipótese tivesse acontecido, então, a Assembleia da República não estaria a respeitar a advertência contida na Directiva n.º 2002/90/CE, para a necessidade de criminalizar o auxílio à permanência ilegal.

A imigração ilegal não comporta, apenas, as vertentes da «entrada» e do «trânsito», mas, também, o da «permanência», como consequência da «entrada». Daí que, nesse novo regime sancionatório das infracções criminais associadas à imigração ilegal, tem cabimento a criminalização do auxílio à permanência ilegal.

Não pode, por isso, sufragar-se a tese dos arguidos de que a lei de autorização legislativa não definia, com rigor, o sentido e extensão da autorização concedida ao Governo.

Em conformidade com o que acaba de dizer-se, pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 34/2003, de 25 de Fevereiro, que, «Por fim, procede-se à transposição, para o direito interno (…) do previsto na Directiva n.º 2002/90/CE, do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, e, na Decisão Quadro, do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, relativa ao reforço do quadro penal para a prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares» – realce nosso.

Concluindo, pelo que acaba de dizer-se, porque abrangida pela autorização legislativa a criminalização...

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