Acórdão nº 237/07 de Tribunal Constitucional (Port, 30 de Março de 2007

Data30 Março 2007
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 237/2007 Processo n.º 802/04 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

Contra A. foi deduzida acusação pelo representante do Ministério Público no Tribunal Judicial de Ponte da Barca, que lhe imputou a autoria de um crime de maus tratos a cônjuge, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 6, do Código Penal, referindo-se nessa acusação que, na pendência do seu casamento com B. casamento entretanto dissolvido por divórcio, o arguido infligiu à ofendida “maus tratos físicos e psíquicos, ofendendo-a na sua integridade física, ameaçando-a e ofendendo-a na sua honra e consideração, procurando, por vários meios, perturbá-la física e psicologicamente; e esta situação foi-se agravando até que, no desenvolvimento dessa conduta, no dia 12 de Dezembro de 2002, cerca das 9h30m, no lugar da …, Ponte da Barca, no interior da residência de ambos, o arguido deu socos e pontapés à porta do quarto onde se encontrava a ofendida e, como esta abrisse a porta, empurrou-a para cima da cama e colocou-se sobre ela, apertando-lhe o pescoço por forma a asfixiá-la, prendendo-lhe, ao mesmo tempo, os braços com os seus joelhos, impedindo-a de se movimentar, enquanto lhe cuspia para a face e para a boca e lhe dizia: «puta», «ainda hás-de morrer antes de mim», ao mesmo tempo que lhe exigia que lhe devolvesse o dinheiro que lhe havia roubado, tendo desta agressão resultado directa e necessariamente para a ofendida contusão na região cervical que demandou um dia para curar». Entendeu ainda o Ministério Público que «o arguido agiu com o propósito concretizado, assumido e levado a cabo de forma livre, voluntária e consciente, de lesar a integridade física da ofendida e de lhe infligir maus tratos, provocando-lhe lesões físicas, medo e inquietação».

Realizada a audiência de julgamento, a Juíza do Tribunal Judicial de Ponte da Barca considerou provados os seguintes factos:

“1. O arguido A. e a assistente B. casaram em 4 de Julho de 1971, encontrando-se divorciados desde 31 de Março de 2003;

  1. Deste o início do casamento e ao longo de vários anos, na residência de ambos, em Oleiros, Ponte da Barca, com uma frequência, pelo menos, mensal, e no decurso de discussões ainda mais frequentes, o arguido dava murros e bofetadas à assistente, chamando-lhe «puta», «vaca», «cabra», «vai para a via norte» e ameaçando-a de que lhe batia e a matava. Mais concretamente:

  2. Em data não apurada do ano de 1971, pouco depois de terem casado, o arguido agrediu a assistente com bofetadas e bateu repetidamente com a cabeça da assistente na parede;

  3. Em data não apurada do ano de 1973, o arguido encostou uma arma de fogo à cabeça da assistente, ameaçando-a de que a matava, o que se voltou a repetir noutras ocasiões não concretamente apuradas;

  4. Em data não apurada do ano de 1974, quando a assistente estava grávida da filha do casal, C., o arguido deu-lhe bofetadas e socos;

  5. Em data não apurada do ano de 1986, o arguido encostou o bico de uma faca ao peito da assistente, ameaçando-a de que a matava;

  6. Em data não apurada do ano de 1996, o arguido bateu à assistente com um braço que então tinha engessado, tendo-lhe rachado a cabeça;

  7. De cada vez que o arguido batia na assistente causava-lhe, directa e necessariamente, dores e hematomas nas regiões do corpo atingidas;

  8. Também no decurso do ano de 1996, quando a assistente intentou pela 1.ª vez acção de divórcio, o arguido ameaçou-a de que tinha uma espingarda carregada e a matava;

  9. Era também frequente o arguido apelidar a assistente de «ladra», acusando-a de lhe furtar coisas;

  10. No dia 12 de Dezembro de 2002, cerca das 9h30, no Lugar da …, Ponte da Barca, no interior da residência de ambos, o arguido deu socos e pontapés na porta do quarto onde se encontrava a assistente e, quando esta abriu a porta, ele empurrou-a para cima da cama e colocou-se sobre ela, apertando-lhe o pescoço por forma a asfixiá-la, prendendo-lhe ao mesmo tempo os braços com os seus joelhos, impedindo-a de se movimentar, enquanto lhe cuspia para a face e para a boca, dizendo-lhe «puta», «ainda hás-de morrer antes de mim», ao mesmo tempo que lhe exigia que lhe devolvesse o dinheiro que lhe havia roubado;

  11. Em consequência desta conduta do arguido, resultou directa e necessariamente para a assistente contusão na região cervical, que demandou para curar 1 dia sem incapacidade para o trabalho, tendo sido assistida no Serviço de Atendimento Permanente no Centro de Saúde de Ponte da Barca nesse mesmo dia, tendo tal assistência importado um custo de 15,40 €;

  12. Em consequência de tal conduta do arguido a assistente teve de ser medicada com calmantes e relaxantes;

  13. Aquando de tais factos (12 de Dezembro de 2002), a assistente auferia, como contrapartida do seu trabalho, o salário mínimo nacional;

  14. Frequentemente, o arguido ameaçava a assistente que lhe dava dois tiros na cabeça, sendo frequente colocar espingardas carregadas por detrás das portas e apontar as mesmas à assistente;

  15. Frequentemente, o arguido proibia a assistente de sair de casa, ameaçando-a de que se chegasse a casa e não tivesse a comida pronta lhe batia;

  16. Por outro lado, o arguido mantinha frequentemente relações extra-conjugais, das quais não fazia segredo relativamente à assistente, com o propósito de a humilhar;

  17. Na verdade, era frequente o arguido ser visto a passear com outras mulheres, que não a assistente, como se de marido e mulher se tratasse;

  18. O arguido frequentemente recebia em casa telefonemas de outras mulheres, algumas das quais expressamente se identificavam como sendo suas amantes;

  19. O arguido trazia frequentemente consigo cartas de amor que lhe eram dirigidas por outras mulheres que não a assistente, bem como fotografias não só de outras mulheres que não a assistente, mas também algumas em que aparecia o próprio arguido na cama com outras mulheres que não a assistente;

  20. Por diversas vezes a assistente encontrou dentro do carro do arguido preservativos usados e lenços usados com restos de esperma, elementos estes que o arguido também deixava na sua roupa para a assistente lavar;

  21. Na sequência do que o arguido lhe fazia e dizia, ficava a assistente abatida, humilhada, nervosa e aterrorizada, temendo pela sua integridade física e até pela própria vida;

  22. Sempre que insultou, ameaçou e bateu na assistente, o arguido actuou de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo o que estava a fazer e que nada justificava tal comportamento;

  23. Sabia ainda o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo actuado sempre com o propósito de maltratar física e psiquicamente a assistente, sua mulher, desinteressando-se por completo do bem-estar desta;

  24. No proc. n.º 4/00, deste Tribunal, foi o arguido condenado na pena de 102 dias de multa à taxa diária de 1600$00, pela prática, em 28 de Novembro de 1999, de um crime de ofensa à integridade física simples;

  25. Em consequência das condutas do arguido supra descritas, ao longo de todo o seu casamento a assistente viveu num permanente estado de medo e perturbação física e psicológica, sentindo-se profundamente humilhada, deprimida, triste e nervosa;

  26. Na fase final do casamento, a assistente trancava-se à chave no quarto onde dormia sem o arguido, com medo que este lhe batesse e concretizasse as ameaças que frequentemente lhe dirigia;

  27. O arguido é pirotécnico, auferindo mensalmente, pelo menos, 500 €, vive actualmente em casa de uma irmã e é dono de um veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 504, de 1991, bem como de duas carrinhas de marca Toyota, modelo Hayce, ambas com mais de 10 anos.”

    Por considerar que estes factos integravam uma alteração substancial da acusação, tal alteração foi comunicada ao arguido e ao Ministério Público, dando-se assim cumprimento ao disposto no artigo 359.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), para que se pronunciassem nos termos do n.º 2 do mesmo artigo. Tendo-se o arguido oposto à continuação do julgamento pelos novos factos, a Juíza do Tribunal Judicial de Ponte da Barca passou à leitura da sentença.

    Nessa sentença, de 14 de Janeiro de 2004, após se enunciarem os factos considerados provados (atrás referidos) e não provados e as razões da convicção do Tribunal, consignou-se o seguinte:

    “Tais factos são susceptíveis de configurar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do disposto no artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal.

    Na verdade, embora o arguido venha acusado da prática de um crime de maus tratos a cônjuge, a verdade é que na acusação apenas é descrito um episódio concreto em que o arguido atingiu a assistente na sua integridade física.

    Pelo que consideramos que, apesar de o arguido vir acusado de um crime de maus tratos, a verdade é que os factos vertidos na acusação substancialmente apenas consubstanciam a prática pelo arguido de um crime à integridade física simples.

    Na verdade, e conforme tem sido entendido por diversa doutrina e jurisprudência, o tipo legal de crime de maus tratos, previsto e punido no artigo 152.º do Código Penal, pressupõe «uma reiteração das condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes» (acórdão da Relação do Porto, de 5 de Novembro de 2003, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf). Daí que não sejam suficientes para preencher este tipo legal de crime as situações isoladas, exigindo-se antes uma reiteração de maus tratos, sendo esta a ratio da autonomização deste crime. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto, de 9 de Dezembro de 1998, de 3 de Novembro de 1999, de 20 de Setembro de 2000, de 31 de Janeiro de 2001 e de 3 de Abril de 2002, todos in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf.

    Também Taipa de Carvalho, em anotação ao artigo 152.º do Código Penal, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 334, salienta a exigência de...

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