Acórdão nº 253/10 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Junho de 2010

Magistrado ResponsávelCons. Maria Jo
Data da Resolução18 de Junho de 2010
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 253/2010

Processo nº 782/09

  1. Secção

Relatora: Conselheira Maria João Antunes

Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Beja, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele Tribunal de 4 de Junho de 2009.

    2. A decisão recorrida julgou “inconstitucional por ofensa do princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias (arts. 2º e 9ºb) da CRP), do princípio da proporcionalidade (art. 18º nº.2), e do direito à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º), a norma do nº.1 do art. 359º do CPP resultante da redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto”, com a seguinte fundamentação:

      Como resulta da acta da anterior sessão de audiência de julgamento, foi comunicada ao MP, ao Assistente e ao Arguido, nos termos do disposto no art. 359º do CPP, uma alteração substancial de factos dos quais resulta a imputação a este último de um crime diverso – art. 1º f) do mesmo diploma legal.

      Em síntese, da prova produzida resultaram factos subsumíveis no tipo de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, sendo que ao arguido vinha imputada a prática de um crime de condução perigosa.

      O MP e o Assistente manifestaram a sua concordância.

      O Arguido opôs-se.

      Uma vez que os novos factos apurados se referem, no essencial, à intenção do arguido, não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo. Pelo que, em face do disposto no nº.1 do referido art. 359º, os autos deveriam prosseguir, sem que ao Tribunal fosse possível ter em consideração os novos factos para efeitos de condenação.

      Entendo porém que tal norma ofende o princípio do Estado de direito democrático, enquanto garante da efectivação de direitos, liberdades e garantias (arts. 2º e 9ºb) da CRP), o princípio da proporcionalidade (art. 18º nº.2) e o direito à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º), pelas razões que passo a expor:

      A função do direito penal é a tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal, entendendo-se bem jurídico como «a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso» - Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág.43.

      É no sistema social como um todo que reside a fonte legitimadora e produtora da ordem legal dos bens jurídicos. E a concretização dos bens jurídicos dignos de tutela penal só pode ser alcançada através da ordenação axiológica jurídico-constitucional. Ou seja, um bem jurídico político-criminalmente tutelável só existe quando se encontre reflectido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido, o que legitima o direito de punir estatal como forma de preservação das condições fundamentais da mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade (arts. 2º e 9º b) da CRP). Assim se justifica a intervenção do Estado na restrição de direitos, liberdades e garantias na estrita medida do necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º nº.2 da CRP) – ob. cit. págs.47 e 54.

      Entre o direito penal e o processual penal existe uma relação de instrumentalidade necessária, sendo este uma sequência de actos juridicamente preordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respectivas consequências jurídicas e sua justa aplicação (definição de Figueiredo Dias, adoptada por Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Verbo, Volume I, 3ª edição, pág.15).

      Todavia, não quer isto dizer que o processo penal não tenha interesses próprios a tutelar. A verificação da ocorrência de um crime e a aplicação da correspondente sanção não se pode fazer com recurso a quaisquer meios. Razões de segurança implicam por vezes a renúncia à descoberta da verdade. Disso são exemplo as regras relativas às proibições de prova, proibição da reformatio in pejus, non bis in idem, prescrição do procedimento. Ou seja, a verdade só pode ser procurada «de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas» ob. cit. pág. 25.

      Também as normas relativas à fixação do objecto, cuja fonte é o nº.5 do art. 32º da CRP (estrutura acusatória do processo), visam primacialmente as garantias de defesa do arguido e o direito deste ao contraditório.

      Em obediência a tal comando constitucional, a autorização legislativa concedida ao Governo para aprovar o Código de Processo Penal (Lei nº. 43/86, de 26 de Setembro), dispunha no seu art. 2º: «parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os actos do processo e incrementação da igualdade material de “armas” no processo; estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperado com o princípio da investigação (…)».

      Desde então, e até hoje, temos que o paradigma do CPP, na fase do julgamento, consiste num processo de estrutura acusatória temperado pelo princípio da investigação judicial, de que a expressão máxima é o art. 340º.

      Ora, o princípio da investigação traduz o «poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão» ob.cit.pág.73.

      Quer isto dizer que, definido o objecto do processo e do julgamento pela acusação, o tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios processualmente admissíveis alcançar a verdade histórica (verdade material), independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa, não se bastando assim com uma verdade meramente formal – ob.cit.pág.78, 79.

      Ora, ao atribuir ao julgador tal poder-dever, o legislador previu que daí poderia resultar o apuramento de factos, uma reconstrução histórica diferente daquela que consta na acusação ou na pronúncia. E esses novos factos tanto podem resultar em benefício do arguido (ex. causas de justificação), como podem implicar que este seja confrontado com uma realidade diversa (imputação do mesmo tipo de crime mas numa modalidade mais gravosa ou imputação de um crime diverso).

      Neste último caso, estamos perante uma alteração substancial dos factos – art. 1º f) do CPP.

      Ora, se no primeiro caso não existem quaisquer óbices à consideração de tais factos, uma vez que o fim do processo penal (a realização da Justiça) é atingido na sua plenitude, no segundo caso há que encontrar uma solução equilibrada que, por um lado, garanta a tutela efectiva do bem jurídico violado e, por outro, assegure as garantias de defesa do arguido, mormente o respeito pelo contraditório.

      Deixando de parte as situações de factos autonomizáveis, que não levantam dificuldades, quando de factos não autonomizáveis se tratou esse equilíbrio foi encontrado pela doutrina e pela jurisprudência, com o “aval” do Tribunal Constitucional, ao abrigo da anterior redacção do art. 359º do CPP – Cf. Acórdão do TC n.º 237/2007, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Maio de 2007.

      Efectivamente, a extinção da instância e a comunicação dos novos factos ao MP para que relativamente a eles proceda assegura plenamente tanto o direito do arguido a um processo justo e equitativo como a tutela efectiva do bem jurídico violado.

      Sucede que tal equilíbrio foi quebrado com a solução adoptada pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto. E isto acontece especialmente nos casos em que da alteração dos factos resulta a imputação de um crime diverso e que tutela um bem jurídico diferente daquele cuja imputação foi feita ao arguido na acusação ou na pronúncia, como é o caso dos autos.

      Escreveu-se a propósito na exposição de motivos da Proposta de Lei nº. 109/X (Revisão do CPP), «No âmbito da alteração substancial de factos, introduz-se a distinção entre factos novos autonomizáveis e não autonomizáveis, estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo (artigo 359.º). Trata-se de uma decorrência dos princípios non bis in idem e do acusatório, que impõem, no caso de factos novos não autonomizáveis, a continuação do processo sem alteração do respectivo objecto».

      Transpondo para o caso concreto, tendo sido produzida toda a prova, haveria lugar à prolação de sentença que, adiante-se, seria necessariamente absolutória dado que não resultou provado nem o dolo de perigo, nem a negligência que o tipo de crime previsto no art. 291º do Cód.Penal exige. Quer isto dizer que a conduta criminosa do arguido, que tentou atropelar o assistente e só não o conseguiu por aquele se ter refugiado a tempo de evitar ser colhido pelo automóvel, escaparia à necessária e adequada reacção da ordem jurídica e, correlativamente, ficaria desprovido de tutela penal o direito fundamental do Assistente à inviolabilidade da sua integridade física (art. 25º da CRP), enquanto titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

      Assim, e por via de tal alteração, entendeu o legislador sobrevalorizar os direitos do arguido, restringindo desnecessária e injustificadamente o direito daqueles que vêm violados os seus direitos fundamentais à protecção e tutela efectiva desses mesmos direitos, o que viola claramente o disposto no art. 18º nº.2 da CRP.

      Paralelamente, acabou por limitar o poder de investigação do juiz, que agora apenas poderá fazer uso dos mecanismos legais ao seu dispor para obter a comprovação dos factos descritos na acusação ou na contestação, sem se preocupar, porque de tarefa inútil se trata, com a...

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