Acórdão nº 254/07.1TTVLG.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 15 de Setembro de 2010

Magistrado ResponsávelSOUSA GRANDÃO
Data da Resolução15 de Setembro de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: CONCEDIDA A REVISTA Sumário : I - O abuso do direito caracteriza-se pelo exercício anormal de um direito próprio, que não pela violação de um direito de outrem ou pela ofensa de uma norma tuteladora de um interesse alheio.

II- Esse exercício anormal verifica-se quando um determinado comportamento, aparentando configurar o exercício de um direito, se traduz, afinal, na não satisfação dos interesses pessoais de esse direito é instrumental e na correspondente negação de interesses sensíveis de terceiros.

III - O abuso do direito só deve ser convocado quando a disciplina legal adequada ao caso não tenha a virtualidade de evitar uma qualquer situação de flagrante injustiça que teime em subsistir. Por isso se diz que tal instituto funciona como uma válvula de segurança do sistema.

IV - A disciplina normativa vocacionada para reagir contra uma eventual inércia do empregador, no tocante ao accionamento disciplinar, é a respeitante ao instituto da caducidade. Rejeitada a tese da caducidade – com o consequente reconhecimento de que a reacção da entidade empregadora foi tempestiva – não se afigura legítimo que o direito, assim acabado de reconhecer, venha a ser neutralizado, logo a seguir, por uma outra via jurídica, in casu, o abuso do direito, sob o fundamento de que a entidade empregadora não reagira, ao longo de vários anos, à pena de prisão aplicada ao trabalhador e sua consequente ausência ao serviço, guardando tal reacção para o momento em que este se apresentou ao serviço.

V - Admitir o contrário, seria consagrar um novo mecanismo legal de neutralização de direitos pelo decurso do tempo, que o nosso ordenamento jurídico circunscreve a dois institutos: prescrição e caducidade.

VI - Por via de regra, a comunicação das faltas, tendo em vista a sua justificação, cabe ao trabalhador – art. 25.º, do DL n.º 874/76, de 28 de Dezembro, e 228.º, do Código do Trabalho de 2003; in casu, embora se admita que o trabalhador não se sentisse obrigado a efectuar essa comunicação – já que sabia que a sua entidade empregadora se havia inteirado da sua situação (cumprimento de pena de prisão) – já não se reconhece, todavia, que um tal condicionalismo tenha a virtualidade de fazer inverter essa obrigação, fazendo recair sobre a entidade empregadora o encargo de promover a informação actualizada relativa à situação do trabalhador.

VII - Assim, a não promoção, pela entidade empregadora, de diligências tendentes a obter informação actualizada relativa à situação do trabalhador nunca teria a virtualidade de criar neste a legítima expectativa de que aquela jamais iria reagir disciplinarmente contra as suas ausências ao trabalho.

VIII - A noção legal de “justa causa” pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: um comportamento culposo do trabalhador, violador dos deveres de conduta ou valores inerentes à disciplina laboral, que seja grave em si mesmo e nas suas consequências; um nexo de causalidade entre esse comportamento e a impossibilidade de subsistência da relação laboral.

IX - A impossibilidade de subsistência do vínculo deve ser reconduzida à ideia de “inexigibilidade” da sua manutenção, mais se exigindo uma impossibilidade prática, com necessária referência ao vínculo laboral em concreto, e imediata, no sentido de comprometer, desde logo e sem mais, o futuro do contrato de trabalho.

X - As faltas não justificadas do trabalhador – cuja qualificação foi atribuída, definitivamente, pelas instâncias – consubstanciando o incumprimento do dever de assiduidade – art. 121.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho de 2003 – traduzem um comportamento ilícito e culposo imputável ao trabalhador.

XI - Tendo o trabalhador faltado injustificadamente ao trabalho no período compreendido entre 12 de Novembro de 2001 e 26 de Fevereiro de 2007, torna-se evidente que não era exigível a uma entidade empregadora colocada na posição da Ré que mantivesse a relação laboral que com aquele firmara.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: 1- RELATÓRIO 1.1.

AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Valongo, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra “Rede Ferroviária Nacional – .........., EP”, pedindo se declare a ilicitude do despedimento de que foi alvo por parte da Ré e que, por via disso, seja a mesma condenada a reintegrá-lo no seu posto de trabalho ou, se for esse o caso, a pagar-lhe a indemnização alternativa e, bem assim, os montantes retributivos, ressarcitórios e moratórios discriminados na P.I..

Alega, em síntese, que as faltas ao trabalho – que motivaram o sobredito despedimento – foram determinadas pela pena de prisão efectiva em que o Autor foi condenado e que cumpriu entre 12/11/2001 e 26/2/2007, sendo que as referidas faltas se hão-de ter por justificadas em função do motivo que as determinou.

Mais invoca a caducidade de procedimento disciplinar – que só foi accionado após o regresso do Autor à empresa – e o abuso de direito em que se consubstancia o comportamento da Ré – que, conhecendo a situação de detenção do Autor, sempre lhe enviou os documentos atinentes ao seu vínculo laboral e lhe processou os recibos de vencimento para, afinal, o despedir aquando do seu regresso.

Em desabono das pretensões accionadas sustenta a Ré, na sua contestação, a cabal justificação do despedimento operado, quer pela subsistência do motivo que o determinou, quer pela investigação do vício procedimental coligido e do pretenso abuso de direito.

1.2.

Instruída e discutida a causa, veio a 1.ª instância a proferir sentença que, na procedência parcial da acção, julgou ilícito o despedimento do Autor, condenando a Ré a reintegrá-lo no seu posto de trabalho e a pagar-lhe os salários de tramitação, bem como os créditos laborais que houve por devidos.

Embora começasse por rejeitar a excepção de caducidade invocada pelo Autor, o Ex.mo Juiz acabou, todavia, por considerar plenamente justificadas as suas ausências ao serviço – a consequenciar, sem mais, a ilicitude do despedimento – e, subsidiariamente, procedente o abuso de direito imputado à Ré que, “... durante anos absteve-se de instaurar um processo disciplinar ao Autor e pelo contrário só o instaurou quase dois meses após ele ter-se apresentado ao trabalho”.

Irresignada com tal decisão, dela apelou a Ré, sendo que o Tribunal da Relação do Porto, cingindo a sua pronúncia à “... existência de justa causa para o despedimento do recorrido”, confirmou na íntegra a sentença apelada, ainda que com motivação parcialmente divergente: - considerou injustificadas as faltas do Autor, mas verificado o abuso de direito da Ré.

1.3.

Continuando irresignada, a Ré pede a presente revista, de cujo extenso núcleo conclusivo é lícito extrair a síntese útil seguinte: 1- não emergem quaisquer elementos de facto provados nos presentes autos que demonstrem que a instauração do procedimento disciplinar e respectiva decisão de despedimento com justa causa constituísse uma vontade da ora Recorrente reagir, por represália, do facto do ora Recorrido “... ter pretendido voltar a trabalhar ...”, para assim se neutralizar, por ilícita, a decisão de despedimento tomada no culminar do procedimento disciplinar (ou mesmo de qualquer outra decisão de sanção disciplinar conservatória, como a mera admoestação, apesar da incontestável ausência ao trabalho, pelo período de cerca de 5 anos e 3 meses, imputável ao ora Recorrido); 2- face às particulares vicissitudes do caso concreto, o exercício do poder disciplinar pela entidade empregadora nunca se deverá entender como prática de abuso de direito porque, apesar do regresso do trabalhador e da instauração do procedimento e despedimento serem concomitantes, não é no regresso e na vontade do trabalhador assumir funções que reside o motivo do exercício do poder disciplinar, mas no subsequente conhecimento pela ora Recorrente de que todo o anterior impedimento prolongado de prestar trabalho ocorreu por motivo imputável ao trabalhador; 3- corroborando o acórdão recorrido a aplicação do regime de suspensão do contrato de trabalho aos casos de condenação em pena de prisão sem trânsito em julgado, por identidade de razão com os casos de prisão preventiva, por ambos comungarem o objectivo constitucional de observância de presunção de inocência, desde logo essa decisão justifica a (aliás, necessária) ausência de procedimento disciplinar até verificação do trânsito da sentença condenatória, porquanto, até esse momento, ao abrigo da figura da suspensão do contrato de trabalho, encontra-se suspenso o dever de assiduidade do trabalhador cujo eventual incumprimento, por faltas injustificadas, redundaria em possível justa causa para o exercício do poder disciplinar visando o seu despedimento; 4- ora, não podendo, por esse motivo, a ausência do Autor corresponder sem mais a um comportamento susceptível de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
9 temas prácticos
10 sentencias
  • Acórdão nº 4117/06.0TTLSB.L1-4 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 25 de Março de 2015
    • Portugal
    • 25 d3 Março d3 2015
    ...- Proc 09S0153, de 29.04.2009 - Proc 08S3081, de 17-06-2009 - Proc 08S3698, de 03.6.2009 - Proc 08S3085, de 15-09-2010, Proc 254/07.1TTVLG.P1.S1, de 7-10-2010 - Proc 439/07.0TTFAR.E1.S1, de 13-10-2010, Proc 142/06.9//LRS.L1.S1, de 03-10-2012 – Proc 338/08.9 TTLSB.L1.S2, 4º secção, todos ele......
  • Acórdão nº 3809/15.7T8BRG.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 05 de Dezembro de 2016
    • Portugal
    • 5 d1 Dezembro d1 2016
    ...do STJ de 29.04.2009, Proc. nº 08S3081; de 17.06. 2009, Proc.º 08S3698; de 03.6.2009, Proc.º n.º 08S3085; de 15.09.2010, Proc.º 254/07.1TTVLG.P1.S1; de 7.10.2010, Proc.º 439/07.0TTFAR.E1.S1; e, de 13.10.2010, Proc.º n.º 142/06.9//LRS.L1.S1, todos eles disponíveis em No balanço das posições ......
  • Acórdão nº 171/21.2T8PNF.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-04-04
    • Portugal
    • Tribunal da Relação do Porto
    • 4 d1 Abril d1 2022
    ...do STJ de 29.04.2009, Proc. nº 08S3081; de 17.06. 2009, Proc.º 08S3698; de 03.6.2009, Proc.º n.º 08S3085; de 15.09.2010, Proc.º 254/07.1TTVLG.P1.S1; de 7.10.2010, Proc.º 439/07.0TTFAR.E1.S1; e, de 13.10.2010, Proc.º n.º 142/06.9TTLRS.L1.S1, todos eles disponíveis em III.2.2 No caso concreto......
  • Acórdão nº 665/12.0TTBRR.L1-4 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 21 de Maio de 2014
    • Portugal
    • 21 d3 Maio d3 2014
    ...- Proc 09S0153, de 29.04.2009 - Proc 08S3081, de 17-06-2009 - Proc 08S3698, de 03.6.2009 - Proc 08S3085, de 15-09-2010, Proc 254/07.1TTVLG.P1.S1, de 7-10-2010 - Proc 439/07.0TTFAR.E1.S1, de 13-10-2010, Proc 142/06.9//LRS.L1.S1, de 03-10-2012 – Proc 338/08.9 TTLSB.L1.S2, 4º secção, todos ele......
  • Peça sua avaliação para resultados completos

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT