Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2010, de 05 de Março de 2010

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 3/2010

Processo n. 552/09.0YFLSB

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

José Manuel Magalháes Gonçalves interpôs recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência do acórdáo da Relaçáo de Lisboa proferido em 4 de Junho de 2008 no processo n. 10 720/07, da 3.ª secçáo, onde foi condenado, com os seguintes fundamentos:

O acórdáo recorrido encontra -se em oposiçáo com o Acórdáo da mesma Relaçáo proferido, em 4 de Março de 2008, no processo n. 127/08, da 5.ª secçáo.

Efectivamente, aquele interpretou o segmento da alínea b) do n. 1 do artigo 204. do Código Penal «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo» no sentido de abranger os objectos pessoais «levados ou trazidos» pelos utentes dos transportes públicos.

E este interpretou o mesmo segmento da referida norma no sentido de náo abranger os objectos pessoais «levados ou trazidos» pelos utentes dos transportes públicos.

Ambos os acórdáos foram proferidos no domínio da mesma legislaçáo.

E transitaram em julgado.

Por Acórdáo de 12 de Fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal de Justiça julgou verificada a oposiçáo de julgados a que se refere o n. 1 do artigo 437. do Código de Processo Penal e ordenou o prosseguimento do recurso.

Foram notificados os sujeitos processuais interessados - o recorrente e o Ministério Público -, nos termos e para os efeitos do artigo 442., n. 1, do mesmo código, tendo ambos apresentado alegaçóes, concluindo assim:

O primeiro:

O segmento da alínea b) do n. 1 do artigo 204. do Código Penal «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo» náo abrange os objectos pessoais «levados ou trazidos» pelos utentes desses transportes.

A interpretaçáo feita no acórdáo recorrido vai além do sentido máximo e possível da letra da lei.

628 Essa interpretaçáo é proibida pelo n. 3 do artigo 1. do Código Penal.

E inconstitucional, por violar a norma do artigo 29., n. 1, da Constituiçáo.

O segundo:

A expressáo «coisa transportada por passageiros utentes dos transportes colectivos» utilizada na alínea b) do n. 1 do artigo 204. do Código Penal abrange as coisas que o passageiro leva consigo e sobre as quais tem o domínio efectivo.

Esse segmento da norma tem a sua razáo de ser na menor vigilância sobre as coisas e na maior fragilidade da guarda, em resultado das situaçóes de grande aglomeraçáo de pessoas e confusáo que se verificam nos transportes colectivos e criam condiçóes especialmente propícias à prática de furtos.

A realidade com que hoje somos confrontados em matéria de facilidades, rapidez e segurança dos meios de transporte é bem diferente da que se vivia no século XIX e até meados do século passado, náo havendo actualmente fundamento para, nesta matéria, distinguir entre coisas levadas e coisas transportadas pelos utentes de transportes colectivos.

Mesmo que se acentue o valor da segurança e confiança nos transportes, os problemas que se levantam sáo idênticos em ambos os casos, náo havendo razóes para uma interpretaçáo restritiva da norma, naquele segmento.

Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do pleno das secçóes criminais, cumprindo decidir.

Fundamentaçáo.

1 - Náo se pode deixar de concordar com a decisáo da secçáo sobre a verificaçáo da oposiçáo de julgados.

Na verdade, aplicando a norma referida a uma situaçáo de facto idêntica, os acórdáos em confronto chegaram a soluçóes opostas.

No acórdáo recorrido estavam em causa os seguintes factos: o recorrente, que se encontrava no interior de um «eléctrico» da carreira n. 15 da Carris, em Lisboa, numa das paragens, aproveitando a confusáo que se gerou com a entrada de passageiros no veículo, retirou ao ofendido a carteira que este trazia no bolso esquerdo das calças, dentro da qual se encontrava, além de um cartáo de crédito e de outros documentos, a quantia de € 145, com intençáo de se apropriar dessa carteira e dos bens que aí houvesse.

E decidiu -se que essa factualidade preenchia a previsáo da alínea b) do n. 1 do referido artigo 204., concretamente do segmento coisa móvel alheia «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo», no entendimento de que o termo «transportada» «tem aqui o significado de 'levada', 'tida', 'trazida' por passageiros utentes de transporte colectivo».

No acórdáo fundamento os factos considerados eram os seguintes: dentro de um «eléctrico» da mesma carreira, o arguido, enquanto a arguida pressionava com o seu corpo a ofendida contra ele e aproveitando -se do facto de esta, no meio de um grupo de várias pessoas, se preparar para tirar bilhete da respectiva máquina, abriu -lhe uma bolsa que trazia pendurada ao pescoço e, do seu interior, tirou, com intuitos apropriativos, a quantia de € 400.

E decidiu -se que esses factos náo eram subsumíveis àquela norma, que terá sempre em vista a bagagem, ainda que de máo, que se transporta.

2 - Há por isso que passar à resoluçáo do conflito.

O que tem de ser decidido é se o furto de coisa móvel alheia que um passageiro utente de um meio de transporte colectivo leva consigo e com a qual tem contacto físico, como uma carteira de homem guardada num bolso do vestuário (caso do acórdáo recorrido) ou o dinheiro que se guarda numa bolsa pendurada ao pescoço (caso do acórdáo fundamento), é qualificado pela circunstância prevista na alínea b) do n. 1 do artigo 204. do Código Penal.

O texto da norma, na versáo vigente à data da prolaçáo de ambos os acórdáos, era o seguinte: «Transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracçáo tenha lugar na estaçáo, gare ou cais.»

Esta redacçáo foi alterada pela Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, sendo este o texto actual: «Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracçáo tenha lugar na estaçáo, gare ou cais».

Estando em causa o segmento «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo», a alteraçáo náo interfere directamente com a questáo a decidir.

No acórdáo fundamento, depois de se citar jurisprudência num e noutro sentido e de se fazer referência a algumas posiçóes da doutrina...

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