Publicidade financeira

AutorFernando Gravato de Morais
CargoProfessor da Universidade do Minho
§ 1 Considerações gerais

Numa perspectiva evolutiva, podem identificar-se três fases no que toca à matéria do crédito ao consumo.

A originária relação bilateral está, no essencial, limitada à venda a prestações com reserva da propriedade da coisa até integral pagamento do preço.

A intervenção de um terceiro especializado na concessão de crédito ocorre ulteriormente, não sem que num primeiro momento tal participação se tivesse realizado de forma mediata, tendo por base a relação de compra e venda1.

O financiamento directo ao consumidor surge depois de ultrapassados os receios iniciais, através de negócios como o mútuo de dinheiro, a abertura de crédito, a locação financeira, entre outros.

Em termos de regulamentação, o diploma que versa especificamente sobre o assunto é o DL 359/91, de 21 de Setembro2, na sequência da transposição - tardia - da Directiva 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986.

Decorrida mais de uma década em relação ao diploma interno, e mais de quinze anos por referência ao acto comunitário, foi publicada uma Proposta de Directiva, em Setembro de 2002, relativa ao crédito aos consumidores. Ocorreram entretanto várias e substanciais modificações nesse texto. A Proposta alterada de Directiva, de Novembro de 20053, desconsiderou, contudo, muitas das opções originais verdadeiramente protectoras dos interesses dos consumidores.

No nosso ordenamento jurídico projecta-se, para um futuro próximo, o Código do Consumidor. As regras sobre o crédito ao consumo dele farão parte integrante. Foi, de resto, dado a conhecer, em 15 de Março de 2006, o anteprojecto desse diploma - tendo sido recentemente concluída, em 15 de Julho, a fase de discussão pública4.

Posto isto, importa saber à luz da lei vigente quais os negócios nela abrangidos e quais os sujeitos contratantes.

A noção de contrato de crédito ao consumo - resultante do art. 2.°, n.° 1, al. a) - é bastante ampla. Senão vejamos. Por via do diferimento de pagamento, contempla-se, v.g., a venda a prestações. Previsão expressa encontra ainda o mútuo de dinheiro e a utilização de cartões de crédito. A locução "acordo de financiamento semelhante" integra, por exemplo, a locação financeira para consumo ou o aluguer de longa duração (cfr. art. 3.°, al. a))5.

Realce-se que a conclusão dos negócios mencionados não importa sem mais a aplicação do citado regime jurídico. Prevê-se um amplo leque de exclusões. Atendendo ao âmbito deste texto, destaquem-se os casos de crédito gratuito ("sem juros ou outros encargos") ou de crédito sem juros não rateado (aqui não são cobrados juros, embora possam existir outros encargos, "se o reembolso do crédito se efectuar numa só prestação"). A eles não se emprega a disciplina em análise (art. 3.°).

Do ponto de vista dos sujeitos contratantes, refira-se que o beneficiário do crédito é tão só a pessoa singular (física) que actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional (art. 2.°, n.° 1, al. b)). O dador de crédito, por sua vez, é a pessoa singular ou colectiva que, no exercício da sua actividade comercial ou profissional, concede o crédito (art. 2.°, n.° 1, al. c)).

§ 2 A regulamentação da publicidade financeira: perspectiva global
1. A Directiva 87/102/CEE

A Directiva 87/102/CEE, relativa ao crédito ao consumo, regula, no seu art. 3.°, a publicidade.

A norma alude a três aspectos:

- por um lado, à publicidade enganosa, remetendo genericamente para a disciplina resultante da Directiva 84/450/CEE;

- por outro, à publicidade desleal, mandando aplicar as respectivas regras e princípios;

- finalmente, consagra especificidades sobre a publicidade ou qualquer oferta exibida pelo credor ou pelo intermediário na concessão do crédito6.

A disposição tem essencialmente dois fins:

- evitar a publicidade enganosa, mas apenas quando - nas instalações comerciais do credor ou de um intermediário - se indica uma taxa de juro ou um custo, sem que o consumidor tivesse sido destes informado;

- facilitar ao consumidor a comparação das várias ofertas que lhe são realizadas pelos outros credores7.

2. A transposição do diploma comunitário
2.1. O regime jurídico do crédito ao consumo

O diploma de transposição - DL 359/91, de 21 de Setembro - trata a temática no art. 5.°.

A versão inicial do art. 5.° não modificou, do ponto de vista substancial, a disposição comunitária8.

Assim, se, por um lado, remete para as normas relativas à actividade publicitária - contemplando-se aqui os dois primeiros aspectos aludidos na Directiva -, por outro, transpõe a regra, sem inovações, apenas alterando circunstancialmente algumas expressões.

Se, à primeira vista, o normativo parece tutelar amplamente o consumidor - já que se contempla toda a publicidade ou qualquer oferta -, de imediato se restringe essa protecção, seja limitando a sua aplicação à publicidade exibida nos estabelecimentos comerciais, seja impondo somente nalguns casos a indicação (sem mais exigências) da TAEG.

A versão originária do preceito, embora alertando para a temática da publicidade financeira, não resolve a maior parte dos problemas que existem nessa específica sede.

A norma em análise foi, no entanto, recentemente modificada pelo DL 82/2006, de 3 de Maio - que entrou em vigor 60 dias após, ou seja, em 3 de Julho -, ainda que se mantenha a remissão para o regime da actividade publicitária.

As alterações são de vária ordem. Vejamos:

- modifica-se a sua epígrafe, agora designada "comunicações comerciais";

- adicionaram-se 2 novos números (os n.°s 2 e 3);

- altera-se igualmente o seu conteúdo (n.° 1), cabendo aqui salientar, em especial, a obrigatoriedade de, em qualquer caso, indicar a TAEG para cada modalidade de crédito, assim como o facto de não se circunscrever a oferta do crédito à exibição nos estabelecimentos comerciais;

- consagram-se ainda novos mecanismos específicos de protecção do consumidor (cfr. n.°s 2 e 3).

Pode, pois, concluir-se, neste momento, que as alterações são relevantes, perpassam a maior parte do normativo e operam a vários e distintos níveis (formal, procedimental e material).

É melhorada substancialmente a posição do consumidor a crédito, sendo até de realçar que a mais valia não resulta da influência de qualquer texto comunitário, reflectindo muito provavelmente uma necessidade interna (mas que é também seguramente comum aos Estados-membros) resultante do tipo de prática publicitária.

O diploma de transposição dispõe ainda de uma outra norma, de tipo contra-ordenacional, que visa sancionar a inobservância do regime legal - o art. 17.°.

Esta disposição foi igualmente alterada, mas apenas no tocante ao seu primeiro número, em particular quanto ao valor das coimas a aplicar no caso de violação do citado art. 5.°.

2.2. A transposição noutros países da União Europeia

O modo e o conteúdo da transposição do diploma comunitário não foram idênticos nos vários Estados-membros. Citemos alguns exemplos, que nos permitem compreender melhor a abordagem desta temática noutros países, procurando aqui saber em que medida o legislador português foi (ou não) parco na protecção do consumidor a crédito.

Em França, o Code de la Consommation - que sucedeu à Loi Scrivener9 - consagrou um conjunto de normas que vinculam o credor à inserção de dadas menções na mensagem publicitária (art. L. 311-4, art. L 311-5 a 7), não se satisfazendo com as disposições da publicité trompeuse.

Em primeiro lugar, observe-se que as menções obrigatórias são numerosas, não envolvendo apenas o custo total da operação e a indicação da TAEG (mensal e anual), mas também, entre outros elementos, a identificação do credor, a natureza e a duração da operação proposta. Por outro lado, dispõe-se em especial sobre o crédito gratuito, que - não sendo proibido - é desencorajado10.

Pode, com rigor, afirmar-se que o consumidor encontra aqui uma ampla tutela.

O legislador italiano não foi tão expressivo, nem tão incisivo, já que confere ao consumidor uma menor protecção em relação àquela que emerge do texto francês, conquanto melhore ligeiramente a tutela decorrente do texto comunitário. Ainda assim se impõe a indicação da TAEG e do período de validade, embora nos limites definidos pela directiva (art. 123.°, n.° 111 - bem como o art. 116.° - do Testo Unico Bancario para o qual remete, nesta matéria, o recente Codice del Consumo - aprovado pelo D. lgs. 6 settembre 2005, n. 206). De notar que este último diploma consagra ainda um conjunto de regras gerais acerca da protecção do consumidor em sede publicitária.

Em Espanha, a Ley de Crédito al Consumo segue - pode dizer-se inteiramente -, no art. 17.°, o regime da Directiva12. Todavia, importa salientar que - embora o princípio geral seja o de conceder liberdade às instituições de crédito no tocante à publicidade dos seus produtos ou serviços - qualquer publicidade que aluda ao custo das operações financeiras (entre outras) exige o registo prévio junto do Banco de Espanha para que este analise e autorize a respectiva emissão13. A tutela do consumidor tem um forte cariz preventivo, sendo residual a que decorre do regime jurídico do crédito ao consumo.

3. O anteprojecto do Código do Consumidor

O anteprojecto do Código do Consumidor mantém, no art. 287.° (nos seus dois números), a versão originária do art. 5.° DL 359/91.

Tão só...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT