Acórdão n.º 325/2006/T, de 29 de Junho de 2006

Acórdáo n.o 325/2006/T. Const. - Processo n.o 236/2006. - Acordam na 3.a Secçáo do Tribunal Constitucional:

1 - Náo se conformando com o despacho proferido em 7 de Maio de 2001 pela juíza do Tribunal de Instruçáo Criminal de Lisboa, despacho esse por via do qual foi indeferido o pedido formulado pelo denunciante licenciado Amílcar Neto Contente no sentido de se constituir assistente no processo, já que, muito embora estivesse inscrito na Ordem dos Advogados, náo constituiu mandatário forense - recorreu aquele denunciante para o Tribunal da Relaçáo de Lisboa.

Na alegaçáo adrede produzida, o impugnante disse, em dados passos:

II - Sobre o direito de o assistente, sendo advogado, ser patrocinado por si próprio.

1- Da plenitude do exercício da advocacia pelo advogado inscrito. O direito de o advogado exercer o patrocínio reveste, em primeiro lugar, a natureza de direito ao trabalho que ao Estado incumbe assegurar (cf. artigo 58.o,n.o 1, da CRP).

Trata-se, pois, de uma garantia constitucional fundamental. A essa garantia corresponde o direito subjectivo ou faculdade de o advogado obter no trabalho a sua realizaçáo pessoal [cf. o artigo 59.o, n.o 1, alínea b), da CRP].

O trabalho do advogado realiza-se no exercício do patrocínio forense como elemento essencial à administraçáo da justiça (cf. o artigo 208.o da CRP), nos termos regulados pela lei; esta é, em primeiro lugar, a que aprovou os estatutos da respectiva Ordem. Neles náo se encontra qualquer disposiçáo que impeça o advogado ofendido por ilícito criminal de exercer o seu próprio patrocínio enquanto colaborador do Ministério Público, ou perante os tribunais.

Os direitos do advogado enquanto trabalhador e enquanto elemento essencial à administraçáo da justiça constituem direitos fundamentais a que se aplica o regime dos artigos 17.o e 18.o da CRP.

Assim, os preceitos constitucionais respeitantes àqueles direitos sáo directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

A lei só pode restringir tais direitos nos casos expressamente previstos na Constituiçáo, devendo as restriçóes limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Nenhum direito ou interesse constitucionalmente protegido impóe que seja restringido o direito do ofendido-assistente-advogado de colaborar com o Ministério Público na investigaçáo criminal para que a lei lhe confira legitimidade; náo o impóem, designadamente, as normas constantes dos preceitos legais invocados no despacho impugnado.

A interpretaçáo do artigo 70.o, n.o 1, primeira parte, do CPP, no sentido de que o assistente, sendo advogado, náo pode assegurar o seu próprio patrocínio, é ofensiva dos princípios e normas constitucionais supra-invocados, e do princípio do Estado de direito e do seu subprincípio da tutela da confiança, plasmados no artigo 2.o da CRP.

Do mesmo vício padeceriam as normas extraídas dos restantes preceitos legais invocados no despacho recorrido, quando aplicadas para restringirem os direitos do ofendido-assistente-advogado de assegurar o seu próprio patrocínio.

A pretensa norma de criaçáo jurisprudencial invocada no despacho recorrido, agora imposta, constituiu violaçáo da tutela da confiança pois nenhuma jurisprudência válida se conhece que haja restringido o direito do advogado-ofendido de assegurar o seu próprio patrocínio como assistente.

[...] 3- Da inexistência de quaisquer normas ou princípios jurídicos que restrinjam a capacidade de o advogado assegurar a sua representaçáo como assistente em processo penal.

Já acima se referiu o quadro constitucional a que se encontra sujeita qualquer restriçáo a um direito fundamental.

Se a lei entendesse ser materialmente justificável qualquer limitaçáo a tal direito, seguramente que a teria expressamente consagrado e justificado a sua imposiçáo. Mesmo assim, se o tivesse feito, tal norma náo deixaria de passar pelo crivo de malha apertada dos artigos 3.o, n.o 3, e 18.o,n.o 2, da Constituiçáo.

Mas tal norma de natureza exc[e]pcional náo existe. E as garantias constitucionais dos artigos 165.o, n.o 1, alínea b), 203.o e 204.o náo permitem que os juízes criem normas restritivas dos direitos sujeitos ao regime dos artigos 17.o e 18.o da lei fundamental.

III - Conclusóes: [...]

6.a Náo é lícita qualquer restriçáo ao direito fundamental de os advogados assegurarem a sua representaçáo como assistentes em processo penal.

7.a Qualquer norma legal ou jurisprudencial que fosse invocada para restringir o direito de os advogados assegurarem a sua representaçáo como assistentes em processo penal colidiria com as garantias dos artigos 2.o, 17.o, 18.o, 165.o,n.o 1, alínea b), e 204.o da Constituiçáo.

8.a O despacho recorrido violou as normas dos artigos 68.o, n.o 1, alínea a), e 70.o, n.o 1, primeira parte, do CPP e 202.o, n.o 2, 203.o e 204.o da Constituiçáo.

9.a Os preceitos legais invocados no despacho recorrido foram inter-pretados e aplicados no sentido de restringirem os direitos fundamentais do ofendido como assistente e como advogado, em arrepio do que neles se consagra quando interpretados em conformidade com a Constituiçáo.

10.a As normas que foram extraídas de tais preceitos para integrarem a pretensa norma de criaçáo jurisprudencial sáo inconstitucionais por violarem os princípios e normas constitucionais supra-referidos.

O Tribunal da Relaçáo de Lisboa, por Acórdáo de 2 de Outubro de 2002, negou provimento ao recurso, carreando, para tanto, a seguinte fundamentaçáo:

A questáo em análise nos presentes autos é a questáo de saber se poderá um(a) advogado(a) representar-se a si próprio(a) para efeitos de constituiçáo de assistente, no âmbito de um processo criminal, e se a verificar-se tal impossibilidade esta constituirá uma restriçáo de direitos fundamentais.

Sendo certo que nenhuma disposiçáo legal existe que explicitamente permita ou impeça que uma pessoa com a profissáo de advogado(a) se represente a si própria para os efeitos em apreço nos presentes autos, para dilucidar a questáo em análise há que recorrer aos critérios gerais de interpretaçáo das normas que regem o instituto da representaçáo e da constituiçáo de assistente em processo penal, bem como aos preceitos atinentes contidos no Estatuto da Ordem dos Advogados. É a prática jurisprudencial sobre esta matéria.

Da análise daqueles normativos - artigos 258.o a 269.o do CC, e 68.o a 70.o do CPP e Decreto-Lei n.o 84/84, de 16 de Março - retira-se que a representaçáo é um instituto que, por regra, impóe uma dissociaçáo entre representante e representado(a), e que se traduz na possibilidade que os actos jurídicos praticados pelo primeiro(a) terem efeitos jurídicos na esfera do(a) segundo(a). Que a posiçáo processual do assistente, subordinada [à] do Ministério Público, náo é afectada de forma positiva ou negativa pela circunstância em causa, sendo que o contrário violaria o princípio geral do artigo 13.o da

CRP, e ainda que no mencionado Estatuto nenhuma regra existe no qual se possa alicerçar a pretensáo do recorrente.

A jurisprudência tem, por seu turno, examinado a questáo em apreço, pronunciando-se de modo quase unânime no sentido do despacho recorrido.

De entre todos v. o acórdáo desta Relaçáo e Secçáo, publicado na CJ.

Ano XXIII, t. III, a p. 147, no qual explicitamente se indica que 'o queixoso, advogado, quando pretenda intervir como assistente tem de estar representado por advogado', fundando tal entendimento náo apenas nas normas atrás indicadas, como também na análise que aí se faz, da necessidade de manter a equidade das relaçóes intraprocessuais e propiciar a boa administraçáo da justiça.

Assim, e do mesmo modo que no acórdáo atrás citado, entende-se que o queixoso advogado se deverá fazer representar por advogado(a) a fim de se poder constituir assistente nos presentes autos.

Alega, porém, o recorrente que este entendimento é cerceador de direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados.

Considera-se, contudo, que tal entendimento carece em absoluto de fundamento legal, pois inexiste um 'direito' a assegurar a própria representaçáo seja a quem for, advogado(a) ou náo, sendo que, e como já se referiu, tal entendimento seria, esse sim, contrário ao dispositivo contido no artigo 13.o da CRP.

Do acórdáo cuja fundamentaçáo acima se encontra extractada recorreu o impugnante para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este Alto Tribunal, por Acórdáo de 12 de Março de 2003, rejeitado o recurso, por inadmissibilidade, nos termos do disposto na alínea c) do n.o 1 do artigo 400.o do Código de Processo Penal.

O impugnante, entáo, veio juntar aos autos requerimento por inter-médio do qual manifestou a sua vontade de, do Acórdáo de 12 de Março de 2003 lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça e do Acórdáo de 2 de Outubro de 2002 proferido pelo Tribunal da Relaçáo de Lisboa, recorrer para o Tribunal Constitucional.

Tendo o conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 30 de Abril de 2003, admitido o recurso, mas táo-só com referência ao Acórdáo de 12 de Março de 2003, o impugnante veio requerer que fosse determinada a remessa dos autos ao Tribunal da Relaçáo de Lisboa, «a fim de aí ser proferida decisáo sobre o respectivo acórdáo, e de, subsequentemente, ser por este feita remessa dos mesmos autos ao Tribunal Constitucional».

Essa pretensáo foi indeferida por despacho exarado em 27 de Maio de 2003 pelo conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, despacho esse sobre o qual recaiu pedido de aclaraçáo formulado pelo impugnante, pedido que, por sua vez, foi desatendido por despacho de 2 de Julho de 2003.

Deste último despacho arguiu o impugnante nulidade, vindo o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdáo...

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