Acórdão n.º 294/2008, de 01 de Julho de 2008

Acórdáo n. 294/2008

Processo n. 11/08

Acordam na 3.ª Secçáo do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - Realuso - Agência de Câmbios, L.da, e Emerson Marcelo Grandi, arguidos em processo de inquérito que corre termos no Tribunal Central de Instruçáo Criminal, recorreram para o Tribunal da Relaçáo de Lisboa do despacho do juiz de instruçáo que indeferiu o seu pedido de restituiçáo dos saldos bancários que haviam sido apreendidos à ordem do processo, ao abrigo do disposto no artigo 181. do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que a manutençáo da apreensáo de bens para além do prazo máximo da duraçáo do inquérito sem que tenha sido deduzida acusaçáo, é inconstitucional, por violaçáo do direito à propriedade consagrado no artigo 62., dos princípios da proporcionalidade e da adequaçáo, a que se refere o artigo 18., n. 2, e ainda do princípio da presunçáo de inocência do arguido e do direito a um processo célere, consignados no artigo 32., n. 2, todos da Constituiçáo da República.

O recurso foi julgado improcedente por acórdáo de 23 de Outubro de 2007, com a seguinte fundamentaçáo:

Por despacho de 9 de Dezembro de 2004, proferido pelo Juiz de Instruçáo Criminal, foi considerado indiciada a prática de crimes de actividade ilícita de recepçáo de depósitos (artigo 200., do Decreto-Lei n. 298/92, de 31 de Dezembro - Regime Geral das Instituiçóes de Crédito), fraude fiscal qualificada (artigos 103., n. 1, alínea b), e 104., n. 1, alínea f), do RGIT), branqueamento de capitais (artigo 361.-A, n. s 1 e 2, do CP) e ordenada a colocaçáo sob controlo de determinadas contas bancárias, ao abrigo do disposto no artigo 4, n. s 2 e 4, da Lei n. 5/02, de 11 de Janeiro.

Esse controlo permitiu apurar que essas contas, em pouco mais de

um mês, registaram transferências para os Estados Unidas da América e para Hong Kong, no valor de USD 5.110.606,00, o que justificou despacho de 28 de Janeiro de 2005, determinando a apreensáo do saldo das mesmas, ao abrigo do artigo 181., n. 1, do CPP.

Decorridos mais de dois anos sobre a notificaçáo desse despacho, os arguidos requereram o levantamento dessa apreensáo, na sequência do que foi proferido o despacho recorrido.

Alegam os recorrentes que, tendo decorrido o prazo máximo de inquérito sem acusaçáo, deixaram de existir as razóes que estiveram na base da apreensáo.

Contudo, como é sabido, a nossa lei náo atribui qualquer significado ao decurso daquele prazo sem deduçáo de acusaçáo, náo sendo legítimo daí concluir que diminuíram ou deixaram de se verificar os indícios da prática de determinados ilícitos. O excesso daquele prazo apenas pode originar responsabilidade disciplinar ou justificar o recurso a incidente de aceleraçáo processual.

É certo que uma apreensáo, representa uma restriçáo ao direito de propriedade privada (artigo 62. da CRP).

Porém, essa restriçáo está justificada, no caso em apreço, pela necessidade de satisfaçáo de um interesse superior- a realizaçáo da justiça.

Essa restriçáo, relativa ao direito de propriedade, náo é equiparável às restriçóes de direitos pessoais, nomeadamente da liberdade, caso em que a Constituiçáo prevê a existência de prazos (artigo 29., n. 4, da CRP), determinados no artigo 215. do CPP e cujo decurso, só por si, conduz à extinçáo da medida restritiva da liberdade.

Embora o decurso dos prazos de inquérito náo conduzam, automaticamente, ao levantamento das apreensóes ordenadas, teráo de existir regras que permitam esse levantamento, quando o interesse da realizaçáo da justiça deixe de justificar tal restriçáo de direitos.

Alegam os recorrentes que, náo tendo as quantias depositadas em contas bancárias grande interesse para a prova, porque a prova a produzir é essencialmente documental, tornam-se desnecessárias para o exercício da acçáo penal, devendo ser restituídas nos termos do artigo 186, n. 1, do CPP.

Este preceito prescreve "logo que se tornar desnecessário manter a

apreensáo para efeito de prova, os objectos apreendidos sáo restituídos a quem de direito".

O apelo a este preceito náo nos parece correcto, em relaçáo à apreensáo de depósitos bancários, desde logo porque o termo "objecto" náo se adequa a direitos daquela natureza.

Na verdade, no depósito bancário o que está em causa sáo direitos, que náo se encontram na disponibilidade imediata do titular, mas de um terceiro que os detém com base num contrato, razáo por que, com o levantamento da apreensáo, náo existe uma verdadeira "restituiçáo", mas táo só a cessaçáo de uma limitaçáo aos direitos decorrentes de tal contrato.

A apreensáo de depósito bancário tem preceito próprio, o artigo 181. do CPP, que prevê as razóes que a poderáo justificar, devendo o levantamento ocorrer quando as mesmas cessam.

E, como decorre deste preceito, a apreensáo de valores ou quantias em estabelecimento bancário, deve ser ordenada quando o juiz tiver fundadas razóes para crer que estáo relacionados com um crime e se revelaráo de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.

Assim, ao contrário do previsto no artigo 186., citado pelos recorrentes, náo será de ponderar, apenas, a necessidade para efeitos de prova, mas também o interesse para a descoberta da verdade.

Aliás, a aceitar-se a interpretaçáo dos recorrentes, nunca se justificaria a apreensáo de quantias monetárias em estabelecimentos bancários, pois

bastaria que estes certificassem documentalmente o saldo existente e haveria prova suficiente.

Contudo, outras razóes poderáo justificar a manutençáo da apreensáo, que náo a simples prova dos respectivos montantes.

Em relaçáo ao caso em apreço, é preciso ter presente que estáo em causa crimes abrangidos pela Lei n. 5/02, de 11de Janeiro (estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira), diploma que alterou, náo só as regras processuais, como também algumas regras substantivas, relativas à perda de bens a favor do Estado. O legislador, considerando que nem sempre se afigura fácil a prova de que, os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes organizados ou económico-financeiros, sáo vantagens provenientes da actividade ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos artigos 109. a 111. do CP, veio estabelecer algumas regras que impedem os agentes criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspecto, numa mera aparência de legalidade, ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida, consagrando no artigo 7. uma presunçáo sobre a origem das vantagens obtidas pelo agente.

Ora, existindo um regime especial que visa combater este tipo de criminalidade, que em regra usa o sistema financeiro para a sua activi-dade, náo faria sentido levantar as apreensóes de depósitos bancários, por existir outra forma de os provar, o que na prática significaria deixar sem utilidade aquele regime especial, na medida em que os agentes facilmente colocariam os meios financeiros relacionados com a actividade ilícita fora do alcance de uma execuçáo, com prejuízo para a descoberta da verdade, ou seja, para a realizaçáo da justiça.

A manutençáo da apreensáo náo é desproporcionada, atentos os meios que os agentes deste tipo de crimes...

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