Acórdão n.º 348/93, de 16 de Julho de 1993

Acórdão n.° 348/93 - Processo n.° 233/93 Acordam no Tribunal Constitucional: I - Questão 1 - No dia 7 de Abril de 1993, o Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 278.°, n.° 2, da Constituição e 57.° e seguintes da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhes foi dada pela Lei n.° 85/89, de 7 de Setembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.°, 3.°, n.° 2, e 4.° de um decreto sobre 'acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral'. Tal decreto foi aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores no dia 26 de Março de 1993 e foi recebido pelo requerente no dia 2 de Abril do mesmo ano.

2 - As normas ora submetidas à fiscalização preventiva da constitucionalidade dispõem o seguinte: Artigo 2.° Acréscimo da lista de utentes Considera-se aumento de lista a inscrição de utentes, a partir de 2000 até ao máximo de 2500.

Artigo 3.° Remuneração ...........................................................................................................................

2 - O montante referido no número anterior poderá ser aumentado por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e Segurança Social, sempre que tal se justifique.

Artigo 4.° Prestação de trabalho 1 - O aumento da lista de utentes implica, para além do horário de trabalho a que o médico está sujeito, a prestação de trabalho proporcional ao número de utentes inscritos, tendo como referência seis horas semanais por 500 utentes.

2 - A prestação de trabalho acrescida ao horário a que o médico está sujeito não dá lugar ao abono de trabalho extraordinário; 3 - O requerente entende que as normas transcritas são inconstitucionais, aduzindo, em síntese, os seguintes argumentos:

  1. O artigo 2.° será inconstitucional por contrariar o disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo 59.° da Constituição, que atribui a todos os trabalhadores o 'direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual'. É que o regime legal das carreiras médicas em vigor em todo o território nacional impõe o limite de 1500 utentes para cada médico de clínica geral [alínea a) do artigo 20.° do Decreto-Lei n.° 73/90, de 6 de Março]. Ora, a norma sub judicio determinaria que um médico de clínica geral que tivesse a seu cargo 1999 utentes recebesse, nos Açores, a mesma remuneração que lhe seria atribuída, no continente, por prestar serviços a 1500 utentes. Mesmo que este acréscimo de utentes não implicasse alteração do período normal de trabalho, seria maior a intensidade do trabalho prestado e, nesse sentido, seria maior a sua quantidade; b) Por seu turno, o n.° 2 do artigo 3.° será inconstitucional, em conjugação com o n.° 1 do mesmo artigo, que estabelece que 'o aumento da lista é remunerado por uma importância mensal fixa, por utente inscrito, cujo montante mínimo será de 200$'. A actualização deste montante mínimo por simples despacho conjunto de membros do Governo Regional dos Açores corresponderia a uma modificação da norma legal. Assim, seria violado o disposto no n.° 5 do artigo 115.° da Constituição (com a redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional n.° 1/82, de 30 de Setembro): Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.

  2. Por fim, o artigo 4.° implicaria o alargamento do período normal de trabalho dos médicos, previsto no n.° 3 do artigo 9.° do Decreto-Lei n.° 73/90, de 6 de Março, em seis horas semanais. Ora, a previsão deste período normal de trabalho contraria o disposto na alínea b) do n.° 2 do artigo 59.° da Constituição, que atribui ao Estado 'a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho'. Violará, por outro lado, o disposto na alínea a) do artigo 230.° da Constituição, que veda às Regiões Autónomas 'restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores'. E violará, ainda, o disposto nos artigos 115.°, n.° 3, e 229.°, n.° 1, alíneas a), b), e c), da Constituição, por estar em causa matéria de direitos dos trabalhadores, que reclama a intervenção do legislador nacional e que é, portanto, reservada aos órgãos de soberania; 4 - Notificada para se pronunciar sobre o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, nos termos do disposto no artigo 54.° da Lei n.° 28/82, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores sustentou que as normas em apreciação respeitam a Constituição, expendendo, em síntese, esta argumentação: a) O artigo 2.° não ofende o princípio de que a trabalho igual deve corresponder salário igual, porque a alínea a) do n.° 1 do artigo 20.° do Decreto-Lei n.° 73/90 não estabelece um limite máximo de utentes a afectar a cada médico, mais sim uma mera indicação legal, com o fim de promover a personalização das relações entre ele e os utentes, o que é documentado pela expressão 'de cerca'. Assim, a administração de saúde pode aumentar o número de utentes atribuído a cada médico, tendo em conta, entre outras razões, os recursos existentes. Por outro lado, os clínicos da Região Autónoma dos Açores auferem um subsídio mensal referente ao número de utentes que tenham a seu cargo para além de 1500, de acordo com a localização do concelho, tal como os clínicos dependentes da administração central, ao abrigo do n.° 5 do artigo 11.° do Decreto-Lei n.° 310/83, de 3 de Agosto, com o montante previsto na Portaria n.° 796/91, de 9 de Agosto.

    Deste modo, a norma em apreciação instituiria uma remuneração suplementar, com o fim de aumentar a produtividade: os médicos da Região Autónoma dos Açores passariam, afinal, a auferir remunerações superiores aos seus colegas do continente quando tivessem a seu cargo 2000 ou mais utentes e iguais nos casos restantes; b) O n.° 2 do artigo 3.° não viola o disposto no n.° 5 do artigo 115.° da Constituição, por consagrar uma deslegalização parcial (ulterior) do montante mínimo da remuneração a atribuir aos médicos (por cada utente a seu cargo a partir de 2000), a partir de uma definição legal inicial (200$); c) O artigo 4.° não altera os limites de duração do trabalho, normal ou extraordinário, definidos pelos artigos 9.° e 24.° do Decreto-Lei n.° 73/90. Com efeito, o n.° 7 deste último artigo prevê a obrigação de os médicos prestarem até seis horas de trabalho extraordinário por semana. O regime do decreto será menos gravoso do que este, na medida em que a prestação de trabalho dependerá do acordo do médico, nos termos do artigo 1.° Assim, não haverá violação do disposto nos artigos 59.°, n.° 2, alínea b), e 229.°, n.° 1, da Constituição, porque não são alterados os limites máximos de duração do trabalho e porque é respeitada a lei geral da República aplicável ao caso (Decreto-Lei n.° 73/90, de 6 de Março).

    II - Fundamentação

  3. Artigo 2.° do decreto 5 - A exposição de motivos do decreto sobre 'acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral' identifica 'a falta de meios humanos [que] não tem permitido satisfazer, adequadamente, a procura da população', como ratio essendi do acréscimo da lista de utentes. Trata-se de medida que visa 'rentabilizar os recursos existentes', a que se pretende associar a 'concretização de medidas que incentivem o recrutamento e fixação de mais médicos'.

    O autor da norma sustenta que ela não é inconstitucional, afirmando, desde logo, que a alínea a) do n.° 1 do artigo 20.° do Decreto-Lei n.° 73/90 não estabelece um limite máximo de utentes a afectar a cada médico: Artigo 20.° Relação personalizada médico-utente 1 - A personalização das relações do médico de clínica geral com os utentes é promovida principalmente da seguinte forma: a)

  4. A cada médico é confiada uma população de cerca de 1500 utentes, nominalmente designada em lista; ............................................................................................................................

    Entende o Tribunal que a expressão 'cerca de', utilizada na norma, autoriza, com efeito, a ultrapassagem do número de 1500 utentes. No entanto, não se concebe que ainda admita um aumento em um terço desse número (para 2000 utentes). Literalmente, não é sustentável afirmar que 2000 utentes são 'cerca de 1500' utentes.

    A fórmula utilizada pelo legislador deve ser entendida como um limite, mas não como um limite fixo. Do teor da norma decorre que se terá pretendido aceitar que a um médico seja atribuído um número ligeiramente inferior ou superior ao de 1500 utentes. O número de 2000 utentes traduz já uma alteração sensível do limite aproximado estatuído na norma.

    6 - A norma em apreço - o artigo 2.° do decreto- não regula, directamente, os direitos profissionais dos clínicos gerais. Ao aumentar de 'cerca de 1500' para 2000 a lista de utentes de cada médico, a norma reporta-se à ministração dos cuidados de saúde e disciplina o relacionamento - que se pretende personalizado (artigo 20.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 73/90)- entre médicos e utentes.

    Desta sorte, o artigo 2.° do decreto modifica o regime fixado, a nível nacional, pela alínea a) do n.° 1 do artigo 20.° do Decreto-Lei n.° 73/90. E esse regime é aplicável nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 2.° do mesmo diploma legal, 'sem prejuízo das competências dos órgãos de governo próprio'.

    7 - A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido, uniformemente, que o artigo 229.°, n.° 1, alínea a), da Constituição consagra três requisitos - autónomos e cumulativos - a que deve obedecer a legislação emanada das Regiões Autónomas (cf., nomeadamente, os Acórdãos números 92/92, 212/92, 220/92 e 328/92, todos proferidos em sede de fiscalização preventiva e publicados no Diário da República, 1.' série-A, de 7 de Abril, 21 e 28 de Julho e...

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