"Acção inibitória" considerações gerais e a legitimidade no âmbito da lei das cláusulas contratuais gerais
Autor | Prado Klein |
Cargo | Juiz do Tribunal de Justiça do Paraná |
Sabidamente o direito é dinâmico e busca, ao longo do seu percurso histórico, acompanhar a evolução da sociedade, conformar-se às necessidades que surgem, de tal maneira que é possível identificar, em certa época, por exemplo, a valorização do indivíduo em face do Estado.
O Estado todo poderoso, dos regimes ditatoriais, do soberano que tudo podia, do interesse de um só homem, foi sendo substituído, foi dando lugar ao Estado que respeita, valoriza e presta serviços ao indivíduo; que está atento às necessidades, interesses e ao direito da coletividade.
São exemplos emblemáticos desta transformação o surgimento do habeas corpus, instrumento que possibilita a qualquer do povo oferecer resistência aos representantes do Estado que, de forma ilegal ou arbitrária, efetuem qualquer prisão; e as normas de direito administrativo, que determinam a aplicação dos recursos públicos mediante processo transparente e vinculado aos termos da lei orçamentária.
A valorização do indivíduo, sujeito de direitos e não só de deveres, materializou-se na concepção de processo voltada para a satisfação destes interesses particulares, privados, individuais; do indivíduo em face do Estado ou do indivíduo em face de outro indivíduo, prioritariamente, posto que esta a demanda existente, cumprindo ao novo modelo de Estado pensar e atender ao interesse e ao bem estar comum.
Releva observar, no entanto, que o crescimento exponencial da população e a evolução tecnológica, com as conseqüências que daí decorrem, exigiu e possibilitou a modernização, a adequação dos meios de produção, agrícola e industrial, distribuição e aquisição de produtos, ou serviços, visando atender à crescente demanda por bens da vida.
Os meios de comunicação, a globalização, as novas técnicas, o barateamento dos produtos, decorrência do emprego daquelas, a publicidade e o marketing, contribuíram de forma decisiva para o fenômeno da massificação, característica das sociedades industriais e pós-industriais.
Miguel Teixeira de Souza, ao discorrer sobre os direitos difusos, observa que a relevância do tema decorre, dentre outras causas, da "massificação que são característicos das sociedades industriais e pós-industriais: massificação da produção, da distribuição, da informação e do consumo, o que se traduz numa massificação dos respectivos conflitos e o que origina os chamados danos de massas"1.
De outro lado, nem sempre os governantes agem no interesse da coletividade, não sendo difícil encontrar exemplos de emprego inadequado de recursos públicos, obras superfaturadas, decisões equivocadas, desrespeito à lei, políticas sociais ou econômicas ruinosas, favorecimento do poder econômico, etc.
É fundamental, portanto, que o direito, nessa sociedade de massa, crie mecanismos aptos para desempenhar o papel de pacificação social, com a celeridade e eficiência necessária.
É afirmação antiga e conhecida, mas sempre atual e oportuna, valendo lembrar que justiça tardia é justiça negada.
O processo, concebido para atender os interesses individuais, que ainda e sempre exercerá papel de suma importância, precisava de novas alternativas para atender aos interesses dos grupos, classes ou categorias de pessoas, assim como proteger os cidadãos em face do governante mal preparado ou mal intencionado.
É neste contexto que surge, na Itália, a preocupação de construir novos instrumentos para viabilizar o exercício efetivo de direitos antes não identificados no ordenamento jurídico, além dos direitos e interesses públicos e privados.
No campo do direito do consumo e em relação às cláusulas abusivas, há importante instrumento jurídico, adequado para proteção do consumidor, tanto no plano individual quanto coletivo; é a "acção inibitória", introduzida pelo Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de outubro, com caráter marcadamente preventivo, na sua versão primeira.
Atualmente a "acção inibitória", no âmbito do direito do consumo, encontra abrigo tanto na Lei2 n.° 24/96, artigo 10.°3, destinada a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos dos consumidores; quanto no art. 25.°4, do Decreto-Lei n.° 446/85 de 25 de outubro, com alterações do Decreto-Lei n.° 220/95, de 31 de janeiro, destinada a proibir a utilização futura de cláusulas contratuais gerais abusivas.
Como indicado pela terminologia, a "acção inibitória" tem por escopo obter a condenação na realização de uma prestação de fato positivo ou negativo e/ou indenização dos danos individualmente sofridos e resultantes da ação ou omissão do demandado.
É permitido cumular um pedido de condenação do devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária para a hipótese de infração ao comando da sentença, consagrando o caráter marcadamente preventivo desta ação, observados os termos do art. 33.° da Lei n.° 220/955.
Cumpre, no entanto, antes de discorrer sobre a "acção inibitória", apontar o objetivo do presente trabalho, esclarecendo que, depois de fixar alguns conceitos úteis, se pretende discorrer sobre a legitimidade ativa no âmbito da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, com as incursões que se fizerem necessárias para distinguir em relação à Lei do Consumidor, com intervenção rápida no regime da coisa julgada.
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Atentem contra a sua saúde e segurança física;
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Se traduzam no uso de cláusulas gerais proibidas;
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Consistam em práticas comerciais expressamente proibidas por lei.
É usual nos países6 de tradição romana a distinção existente entre os interesses públicos e os interesses privados, fixando-se que o primeiro consiste na contraposição do interesse do Estado ao interesse do indivíduo, enquanto o interesse privado contrapõe os indivíduos em seu inter-relacionamento.
Ou ainda, como leciona Miguel Teixeira de Sousa7, "através do direito público são prosseguidos os interesses da comunidade e através do direito privado são realizados os interesses privados."
Feita esta distinção, que a doutrina considera aceitável, importa dizer que os problemas que surgem não decorrem da eventual inadequação da definição, mas da reconhecida impossibilidade desta tradicional distinção abranger ou esgotar as possibilidades de enquadramento.
É que a expressão "interesse público", como assevera Hugo Nigro Mazzilli8, tornou-se equivocada quando utilizada para alcançar os chamados interesses sociais, os interesses indisponíveis do indivíduo e da coletividade e até os interesses coletivos, os interesses difusos, etc., ainda porque, "tem-se reconhecido que existe uma categoria intermediária de interesses que, embora não sejam propriamente estatais, são mais que meramente individuais, porque são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas", sejam eles interesses num ambiente ecologicamente saudável, interesses trabalhistas, no âmbito do direito do consumidor ou na proteção do patrimônio público ou cultural, por exemplo.
Nessa linha é que surgem os direitos ou interesses transindividuais, situados numa posição fronteiriça entre os direitos ou interesses públicos e os direitos e interesses individuais, ou, na lição de Mauro Cappelletti, citado por Hugo Nigro Mazzilli "são interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam propriamente a constituir interesse público"9.
Ora, se há um interesse ou direito comum ao grupo, nada mais correto e adequado do que a ordem jurídica atuar de modo uniforme, proporcionando, através de um processo coletivo, a intervenção do órgão jurisdicional de uma maneira mais rápida, eficiente e econômica, discutindo-se num só processo o direito de todo o grupo, classe ou categoria de pessoas.
Para além dos efeitos práticos positivos, a demanda coletiva atende ao princípio da eqüidade, na medida em que afasta a possibilidade de decisões contraditórias, geradoras de insegurança social e grande desprestígio para administração da justiça, pois indivíduos em situação idêntica, fática e jurídica, acabariam recebendo tratamento diverso.
Era necessário sistematizar, pois se verificou, com os trabalhos de Mauro Cappelletti, que o interesse de grupos apresentava peculiaridades, como a representação, a substituição processual do grupo lesado; como estender os efeitos da coisa julgada para além das partes do processo; a repartição da indenização entre os lesados indetermináveis ou como assegurar a presença de todo o grupo nos processos coletivos para a decisão e composição dos conflitos intersubjetivos? 10
Recorrer ao sentido da palavra difuso no dicionário é o primeiro passo para compreender a razão pela qual foram os direitos assim definidos.
Segundo o Houaiss, difuso significa "que se espalha largamente por todas as direções, disseminado, divulgado, que não apresenta limites precisos, que se encontra intimamente misturado à atmosfera ambiente", e na etimologia, "do lat. diffusús, a, um `espalhado, derramado, estendido'..."
Definindo direitos difusos, M. Teixeira de Sousa11, citando diversos outros autores, diz que são "aqueles que pertencem a todos e a cada um dos membros de uma comunidade, de um grupo ou de uma classe, sendo, no entanto, insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos", ou, como diz resumidamente Mauro Cappelletti, os direitos difusos pertencem "a todos e a ninguém12",...
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