A publicidade ilícita: "res inter alios" ou domínio de eleição das relações jurídicas de consumo em cujo núcleo central avulta a figura do consumidor?

AutorMário FROTA
CargoProfesseur à l'Université de Paris XII
1. Preliminares

A Comissão Europeia apresentou em 19 de Maio de 2006 uma proposta de Directiva ao Parlamento Europeu e do Conselho, sob a forma de COMUNICAÇÃO COM (2006) 222 final (2006/0070 (COD)), que mais não é do que uma versão codificada do diploma ante os sucessivos retalhamentos a que o texto original, que remonta a 1984, se expusera.

A primeira dissonância ressalta do artigo 1.° da proposta:

"A presente directiva tem por objectivo proteger os negociantes contra a publicidade enganosa e as suas consequências desleais e estabelecer as normas permissivas da publicidade comparativa".

Afigura-se-nos que só de forma reflexa os consumidores beneficiarão do regime que ora se codifica, já que as regras não visam protegê-los directa e imediatamente do conteúdo das mensagens em que a publicidade se plasma.

Opera-se, na realidade, significativa rotação, se não mesmo profunda inflexão, na filosofia de base cujas consequências se avaliarão decerto doravante -, já que o artigo 1.° da Directiva 84/450, do Conselho, de 10 de Setembro de 1984 1, estabelecia expressamente e, em primeira linha, como objectivo primacial, o da tutela da posição jurídica do consumidor, tais os termos em que a noção nela compendiada se decalca:

"A presente directiva tem por objectivo proteger os consumidores e as pessoas que exercem uma actividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, bem como os interesses do público em geral, contra a publicidade enganosa e suas consequências desleais e estabelecer as condições em que a publicidade comparativa é lícita".

De resto, o Código da Publicidade em vigor em Portugal e que na versão original data de 23 de Outubro de 1990, após textos menos conseguidos editados em 1980 e 1983 , também considera a publicidade como relevante domínio que importa, na trincheira primeira, ao consumidor, conquanto não ignore que é susceptível de afectar, por óbvio, uma concorrência equilibrada e salutar inter partes.

Com efeito, do Código da Publicidade português emerge, no n.° 1 do artigo 11, a noção segundo a qual "é proibida toda a publicidade que, por qualquer forma incluindo a sua apresentação, e devido ao seu carácter enganador, induza ou seja susceptível de induzir em erro os seus destinatários (os consumidores), independentemente de lhes causar qualquer prejuízo económico, ou que possa prejudicar um concorrente".

Do acervo de noções que a proposta de directiva ora oferece, de destacar a ideia nuclear que incide na salvaguarda dos interesses negociais nas relações entre concorrentes.

Aí se divisa a noção de publicidade2 e bem assim a de publicidade enganosa em que se ousa, afinal, afirmar que é a que induz ou é susceptível de induzir em erro as "pessoas" a quem se dirige, acrescentando-se de seguida "e cujo comportamento económico pode afectar em virtude do seu carácter enganador (leia-se: o das pessoas atraídas ou seduzidas pelas mensagens) ou que, por estas razões, prejudica ou pode prejudicar um concorrente".

Outro tanto no que tange à publicidade comparativa em que a tónica é posta nos produtos ou serviços oferecidos por um concorrente.

Trata-se, na realidade, de uma perspectiva distinta que não deixa de surpreender. A menos que se trate de uma estratégia do legislador europeu para envolver de forma decisiva nesta barca quem, afinal, relegaria para o plano estrito das relações jurídicas de consumo os aspectos mais constrangedores da publicidade enganadora em que se enredam, afinal e na generalidade, os consumidores. Ou, de modo inverso e em resultado de uma subversão total de propósitos sufragados pelos anunciantes, como habilidade assente em um artifício susceptível de furtar domínio tão sensível à sindicância das instituições de consumidores. É o que ocorre hodiernamente em Portugal em que a APAN Associação Portuguesa de Anunciantes reivindica a eliminação das regras da publicidade do anteprojecto do denominado Código do Consumidor porque a matéria não é de interesse exclusivo dos consumidores ...

No entanto, nos considerandos refeitos da directiva em epígrafe, não deixa de se reconhecer3 que a publicidade, seja ou não indutora de contratos, afecta a situação económica dos consumidores e dos negociantes (por esta ordem, o que é, a todas as luzes, de uma incoerência manifesta).

No que se prende com a consecução do mercado interno, a figura do consumidor de novo de realça, já que se estabelece inequivocamente que "a realização do mercado interno importa a variedade da oferta. Os consumidores e os negociantes podem e devem tirar o máximo partido do mercado interno e a publicidade constitui um meio muito importante de criar em toda a comunidade oportunidades reais de mercado para todos os bens e serviços. As disposições essenciais que regem a forma e o conteúdo da publicidade comparativa nos Estados-membros devem ser uniformes e as regras da publicidade comparativa nos Estados-membros devem ser harmonizadas.

Se essas regras forem respeitadas, tal contribuirá para demonstrar objectivamente as vantagens dos diferentes produtos comparáveis. A publicidade comparativa pode também estimular a concorrência entre fornecedores de bens e serviços no interesse dos consumidores".

2. Critérios determinantes do carácter enganador da publicidade neste passo referenciada

No preâmbulo se prevê que "é necessário fixar critérios mínimos e objectivos, com base nos quais seja possível determinar, entre vários negócios, se uma publicidade é enganosa"4.

E, de entre tais critérios, estabelecidos no artigo 3.°, avulta a formulação segundo a qual: "para determinar se uma publicidade é enganosa, devem ter-se em conta todos os seus elementos e, nomeadamente todas as indicações que digam respeito:

a) às características dos bens ou serviços, tais como a sua disponibilidade, natureza, execução, composição, o modo e a data de fabrico ou de prestação, o carácter adequado, as utilizações, a quantidade, as especificações, a origem geográfica ou comercial ou os resultados que podem ser esperados da sua utilização, ou os resultados e as características essenciais dos testes ou controlos efectuados sobre os bens ou os serviços;

  1. ao preço ou ao seu modo de estabelecimento, e às condições de fornecimento dos bens ou da prestação dos serviços;

    c) à natureza, às qualidades e aos direitos do consumidor, tais como a sua identidade e o seu património, as suas qualificações e os seus direitos de propriedade industrial, comercial ou intelectual, ou os prémios...

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