A transposição da diretiva 1999/44/CE para o direito português e breves considerações sobre algumas soluções adotadas pela Espanha e Alemanha

AutorSandra Bauermann
CargoJuíza de Direito do Paraná Responsável pela Escola de Magistratura de Cascavel Brasil
Introdução

As Diretivas impõem aos Estados-membros da União Européia assegurar seus resultados, deixando-os uma margem na escolha da forma e dos meios para a sua implementação, conforme exegese do artigo 249, parágrafo 3.° do Tratado da União Européia.

Assim, a diretiva fixa os fins a serem atingidos, necessitando de um ato nacional para sua inserção na ordem jurídica do respectivo Estado-Membro, para gerar direitos e obrigações entre particulares, devendo ser objeto de transposição, salvo se a ordem jurídica nacional já tiver alcançado os objetivos nela perseguidos.

Em Portugal, as transposições das diretivas para a ordem jurídica interna são feitas através de Lei, Decreto-Lei ou, nos termos do disposto do n.° 4, decreto legislativo regional, conforme artigo 112, n.° 8, da Constituição da República Portuguesa (com alteração dada pela Reforma Constitucional de 2004).

A Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, em Portugal, foi transposta através do Decreto-Lei 67/2003, de 08 de abril.

O referido ato normativo da União Européia apresenta-se de suma importância para o direito contratual, designadamente para o núcleo fundamental do direito da compra e venda nos Estados-membros.

Assim, o presente estudo tem por objetivo a análise dos aspectos formais e materiais da transposição da Diretiva 1999/44/CE para a ordem jurídica interna portuguesa e os resultados de sua transposição, com breves considerações de alguns aspectos da transposição realizada para o direito espanhol e alemão.

1. Elaboração e principais objetivos da diretiva 1999/44/CE

A Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, tem sua origem mais remota em vários programas e planos de ação da Comunidade Européia para uma política de proteção dos consumidores.

Mas, foi através do Segundo Plano de Ação Trienal sobre política dos consumidores que a Comissão realizou um estudo sobre garantias e serviços pós-venda, de 1993 a 1996, que se cristalizou no Livro Verde sobre as garantias dos bens de consumo e serviços pós-venda, de 15 de novembro de 1993, que tinha por objeto a análise da situação nos distintos Estados-membros e apresentar algumas possibilidades de solução.

Após o processo de discussão e aprovação do Livro Verde, e apresentação de propostas de Diretiva pela Comissão, em 25 de maio de 1999 foi aprovada a Diretiva 1999/44/CE1.

Conforme ensina Manuel J.Marín Lopes2, a finalidade perseguida pelo legislador comunitário na Diretiva ora em exame é dupla, por uma parte, melhorar o funcionamento do mercado interno, por outra, garantir um alto nível de proteção do consumidor. Mas, a consecução de um verdadeiro mercado interno teve importância fundamental na elaboração.

A Diretiva ora em exame traz em seu preâmbulo a finalidade de eliminar as disparidades nas legislações dos Estados-Membros respeitantes às vendas de bens de consumo:

  1. garantindo aos consumidores um nível mínimo de proteção, tanto nas transações internas como nas internacionais (Considerando n.° 3); b) eliminando distorções na concorrência entre os vendedores, reforçando ao mesmo tempo a confiança dos consumidores (considerando n.° 4); c) estabelecendo o princípio da conformidade com o contrato como base comum às diferentes tradições jurídicas dos estados-membros, identificando na falta de conformidade as principais dificuldades dos consumidores e fonte de conflitos (considerandos n.° 6 e n.° 7).

A Diretiva 1999/44/CE assenta-se na garantia de conformidade dos bens com o respectivo contrato de compra e venda, celebrado entre o profissional e o consumidor. Trata-se da primeira vez que um ato normativo da União Européia afeta o contrato de compra e venda, tradicionalmente regulado pelo Código Civil com os parâmetros estabelecidos pelo direito romano clássico.

Assim, a publicação da Diretiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, constitui "uno de los grandes hitos en el tormentoso proceso de construcción de un Derecho contractual genuinamente europeo3.

Embora tenha estabelecido prazo limite para sua transposição, ou seja, 1 de janeiro de 20024, alguns Estados-membros realizaram a transposição tardiamente.

Em Portugal, a transposição realizou-se em 08 de abril de 2003, através do Decreto-Lei n.° 67/2003. A Espanha realizou a transposição por intermédio da Lei 23/2003, de 11 de julho de 2003.

Mas, entre os que cumpriram o prazo, encontra-se a Alemanha, através da Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts, de 26.11.2001, integrante do BGB, que entrou em vigor em 01 de janeiro de 2002.

Apesar de um dos objetivos tenha sido a eliminação de disparidades entre os Estados-membros acerca da matéria, conforme verificaremos na seqüência, basicamente por se tratar de uma Diretiva de harmonização mínima, acabou por acarretar diferenças materiais e formais na sua transposição ao ordenamento jurídico interno dos Estados-membros.

2. Modalidades de transposicão em sede formal e material

A Diretiva 1999/44/CE estabeleceu um nível mínimo de proteção ou de harmonização mínima, ao prever que os Estados-membros podem adotar ou manter, no domínio regido pela presente diretiva, disposições mais estritas, compatíveis como Tratado, com o objetivo de garantir um nível mais elevado de proteção do consumidor (art. 8.°, n.° 2).

Permitiu soluções muito heterogêneas por parte dos Estados-membros, razão pela qual tem se questionado se a Diretiva serviu efetivamente para a harmonização dos sistemas de proteção do consumidor adquirente de bens de consumo ou está atuando como fator de desarmonização dos sistemas dos estados-membros.

Para a Professora Maria Paz García Rubio, vários argumentos apontam para a segunda tendência, por razões de índole técnica e de natureza puramente material5.

Do ponto de vista técnico, ou ainda sede formal de transposição, aponta-se diferenças para a implementação nos ordenamentos internos dos Estados-Membros, identificando-se três soluções denominadas: "grande", "pequena" e "pequeníssima".

A "solução grande" verifica-se quando ocorre a inserção das normas no âmbito do Código Civil, modificando o tratamento da compra e venda. Solução esta adotada pelo legislador Alemão (eine große lösung), em que a Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts integra no Código Civil (BGB6) o regime da Diretiva 1999/44/CE, designadamente através de alterações no regime geral da compra e venda e mesmo do não cumprimento das obrigações.

Merece referência que a Diretiva 99/44/CE contribuiu com a decisão do legislador alemão de integrar o direito do consumo no Código Civil7, até então as diretivas provenientes de Bruxelas, eram transpostas através de legislação especial. A situação mudou com a diretiva 99/44/CE, com a decisão de integrar o direito do consumo no Código Civil Alemão, o legislador revolucionou o direito civil na Alemanha8. A Diretiva sobre a venda de bens de consumo serviu de modelo para nova concepção de direito do contrato de compra e venda.

A "solução pequena" identifica-se na transposição da Diretiva através de legislação especial de proteção do consumidor, deixando praticamente inalterados os regimes da compra e venda e da empreitada do Código Civil.

Esta última foi a solução adotada em Portugal na transposição da Diretiva 1999/44, através do Decreto-Lei n.° 67/2003, de 08 de abril. Apesar da posição defendida pela doutrina ter sido a "solução grande" ou "grande solução", especialmente pelo autor do Anteprojeto, Paulo Mota Pinto9.

Aliás, no "Anteprojeto de Diploma de Transposição da Diretiva 1999/44/CE para o

Direito Português Exposição de motivos e articulado", o seu autor, Paulo Mota Pinto, apresentou dois articulados em alternativa: o primeiro generalizando, tanto quanto possível a respectiva disciplina, através de alterações ao Código Civil e, para as relações com os consumidores, à Lei de Defesa do Consumidor10; o segundo, com a transposição em diploma avulso tal qual a Diretiva, subsistindo ao lado do regime civil geral. Apesar da veemência da defesa da primeira solução, a via eleita foi o diploma avulso.

A Professora Maria Paz García Rubio11 identifica, ainda, uma terceira solução, denominada "solução pequeníssima". Tal solução estaria representada pela promulgação de uma lei ad hoc exclusiva para o contrato de compra e venda de bens de consumo e que praticamente não toca no sistema codificado nas leis de proteção do consumidor. Apontando como exemplo a solução adotada pela Espanha, com a publicação da Lei 23/2003, de 10 de julho, sobre as Garantias da Venda de Bens de Consumo. Mas, ressalta que a situação é contemplada como provisória pelo próprio legislador, para que no prazo de três anos se elabore um texto único das normas de proteção ao consumidor, o que situaria o ordenamento espanhol na linha de solução que é denominada "pequena".

Do ponto de vista material, de um lado se constata o exemplo da Alemanha, que aproveitou a transposição da Diretiva 1999/44/CE para introduzir no seu ordenamento um novo sistema e novos conceitos relativos ao inadimplemento contratual, com a noção de conformidade e remédios, consagrados pela jurisprudência daquele país, elevados a categoria legal. Alterou-se, assim, o regime geral da compra e venda e mesmo do não...

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