Acórdão n.º 13/2007, de 13 de Dezembro de 2007

Acórdáo n. 13/2007

Processo n. 220/05

Acordam no pleno das secçóes criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

1:

1.1 - Maria Alice Rodrigues Gonçalves, devidamente identificada nos autos, interpôs recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência do Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 2004, proferido no processo n. 1408/04 - 5.ª Secçáo, por estar em oposiçáo com o Acórdáo do mesmo Tribunal de 23 de Março de 2000, proferido no processo n. 972/99, também da 5.ª Secçáo e publicado na Colectânea de Jurisprudência STJ (2000), t. II, p. 227.

Alegou, em síntese, que:

Enquanto no acórdáo recorrido se afirmou 'a existência de concurso real entre o crime de tráfico de estupefacientes e o crime de branqueamento, vertidos, respectivamente, nos artigos 21. e 23. do Decreto -Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro';

O acórdáo fundamento decidiu que os agentes do

crime previsto e punido no referido artigo 23. náo po-

dem ser os próprios traficantes - os agentes do crime previsto no artigo 21. do mesmo diploma;

Deste modo, concluiu, versando ambos os acórdáos sobre a mesma questáo de direito e assentando em soluçóes opostas, deverá ser fixada jurisprudência 'no sentido de os agentes do crime do artigo 23. do Decreto-Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, a que corresponde actualmente o artigo 368. -A do Código Penal, náo poderem ser os agentes do crime do artigo 21. do mesmo diploma; ou seja, pela náo existência de concurso real entre os ilícitos penais em questáo'.

1.2 - Recebido o recurso, a secçáo, em conferência, pronunciou -se no sentido da existência de oposiçáo de julgados e determinou o prosseguimento dos autos (acórdáo a fls. 102 e seguintes).

1.3 - Notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos do disposto no n. 1 do artigo 442. do Código de Processo Penal (CPP), apresentaram alegaçóes o Procurador-Geral-Adjuntoearecorrente.

O primeiro pronunciou -se no sentido da confirmaçáo do acórdáo recorrido e da fixaçáo de jurisprudência no sentido do que aí foi decidido, formulando a seguinte proposta de redacçáo:

Existe concurso efectivo de crimes quando o autor do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21. do Decreto -Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, pratica, com os bens ou produtos provenientes dessa conduta, algum dos factos incriminados no artigo 23., n. 1, do mesmo diploma.

Por sua vez, a recorrente terminou as suas alegaçóes com as seguintes conclusóes:

1.ª Do artigo 23. do Decreto -Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, ou melhor, da sua previsáo normativa decorre que os seus destinatários sáo terceiras pessoas - ainda que em proveito do próprio traficante - que náo os agentes do crime de tráfico de estupefacientes;

2.ª Neste sentido, veja -se que a lei portuguesa, nos designados 'pós -delitos', expressamente exclui a possibilidade do agente do ilícito típico precedente poder ser punido em concurso efectivo pelas intervençóes posteriores à consumaçáo, quando realizadas pelo próprio;

3.ª A revogaçáo do artigo 23. do aludido Decreto -Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, o qual corresponde actual-mente ao artigo 368. -A do Código Penal, náo interfere, directa ou indirectamente, na resoluçáo da questáo de direito controvertida;

4.ª Como é entendimento pacífico, o intuito de evitar o confisco de bens ilicitamente adquiridos é conatural a todo e qualquer crime de cunho aquisitivo, sendo os factos posteriores impunes quando praticados pelo agente desse crime;

5.ª Dáo -se por reproduzidos os motivos já referidos, nomeadamente no ponto 5 deste recurso;

6.ª A Lei n. 11/2004, de 27 de Março, que revogou o artigo 23. do Decreto -Lei n. 15/93, o qual corresponde ao já mencionado artigo 368. -A do Código Penal, inseriu-onocapítuloIII, 'Dos crimes contra a realizaráo da justiça'; clara indicaçáo no sentido de apontar a realizaçáo da justiça como sendo o bem jurídico protegido, colocando em crise o entendimento plasmado no acórdáo recorrido e consagrando, assim, a jurisprudência fixada no Acórdáo do Supremo de 23 de Março de 2000.

8904 Deve pois considerar -se que as condutas de branqueamento de capitais náo lesam um outro bem jurídico; náo devendo o traficante ser punido em concurso efectivo por tráfico e branqueamento de capitais;

7.ª Pelo que, em face do exposto e dos acórdáos em oposiçáo, deverá ser fixada jurisprudência no sentido de os agentes do crime do artigo 23. do Decreto -Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, a que corresponde actual-mente o artigo 368. -A do Código Penal, náo poderem ser os agentes do crime de tráfico; ou seja, pela náo existência de concurso real entre os ilícitos penais em questáo.

Termos em que deve proceder o recurso interposto, fixando -se a jurisprudência em consonância com o Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 2000, em detrimento do douto acórdáo recorrido, como é de justiça

.

1.4 - Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência do pleno das secçóes criminais, conforme previsto no artigo 443. do CPP.

Tudo visto, cumpre decidir. 2 - Decidindo:

2.1 - A decisáo da secçáo sobre a verificaçáo da oposiçáo de julgados e sobre o regular processamento do recurso náo vincula o pleno das secçóes.

Consequentemente, devemos começar pelo reexame destas questóes.

No acórdáo interlocutório escreveu -se, a propósito da primeira, o seguinte:

Estáo em causa dois acórdáos do Supremo Tribunal de Justiça que efectivamente assentam, relativamente à mesma questáo de direito, em soluçóes opostas.

Na verdade, sendo a mesma a questáo de direito - a de saber se o agente de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21. do Decreto -Lei n. 15/93, de 22 de Janeiro, quando pratique os factos descritos no artigo 23. do mesmo diploma com os valores proporcionados pela primeira conduta, pode ser punido, em concurso real, pelos dois crimes, ou seja, se, nas referidas circunstâncias, se verifica concurso efectivo entre as duas condutas - , os dois acórdáos optaram por soluçóes opostas:

O acórdáo fundamento entendeu que 'os agentes delituosos a que respeita o dito artigo 23., [...], náo podem, [...], ser os próprios traficantes [...]';

O acórdáo recorrido, por sua vez, entendeu que, nas aludidas circunstâncias, se verificava 'concurso real dos apontados normativos'.

[Certo que,] entre a prolaçáo dos dois acórdáos, foi publicada a Lei n. 11/2004, de 27 de Março, cujo artigo 55. revogou o artigo 23. do Decreto -Lei n. 15/93 e o artigo 53. introduziu um novo preceito no Código Penal - o artigo 368. -A - com a epígrafe «Branqueamento'.

No entanto, a modificaçáo legislativa assim operada em nada influiu na abordagem e resoluçáo daquela questáo. Aliás, o acórdáo recorrido considerou mesmo o novo artigo 368. -A como 'correspondente' ao artigo 23. e acrescentou que o concurso real era agora reportado ao artigo 21. do Decreto -Lei n. 15/93 e ao artigo 368. -A (cf. fl. 17, n. 8 e 9).

Pois bem.

2.1.1 - Poderá objectar -se que as condutas apreciadas em cada um dos acórdáos em confronto náo sáo idênticas do ponto de vista dos factos que as concretizaram - enquanto a do acórdáo fundamento se traduziu, em síntese, na aplicaçáo directa, pelos autores do tráfico de estupefacientes, dos ganhos proporcionados por tal actividade na aquisiçáo de um automóvel e de imóveis, sempre em seu nome, sem qualquer intermediário ou operaçáo tendente a esconder a origem do dinheiro, a do acórdáo recorrido traduziu -se num conjunto de operaçóes, com intervençáo formal de diversas pessoas, com vista a dissimular a sua origem ilícita.

A crítica, no entanto, náo procede.

A lógica da fundamentaçáo do Acórdáo de 23 de Março de 2000 leva, com efeito, a concluir que a soluçáo aí adoptada seria sempre a mesma, independentemente dos particulares contornos da actividade posterior dos autores do tráfico de estupefacientes, porquanto a conclusáo a que aí se chegou foi a de que «os agentes delituosos a que respeita o dito artigo 23. do Decreto -Lei n. 15/93 náo podem ser os próprios traficantes [...]». E, por isso, é que até considerou desnecessário ajuizar da «aptidáo da prova certificada para consentir (ou náo consentir) o preenchimento típico daquele ilícito».

2.1.2 - Dir -se -á ainda que náo se verifica a exigida oposiçáo uma vez que, se o acórdáo recorrido decidiu que os agentes do crime de tráfico de estupefacientes cometeram, em concurso real com este, o crime de branqueamento, o acórdáo fundamento disse que os autores do segundo náo podiam ser os próprios traficantes. O primeiro versará sobre um problema de concurso de infracçóes; o segundo sobre uma questáo de autoria.

No entanto, apesar da letra do dispositivo dos dois acórdáos, a sua análise substantiva, designadamente a da motivaçáo do acórdáo fundamento, conduz -nos à reafirmaçáo da oposiçáo relevante entre ambos.

A questáo da autoria, elemento do tipo objectivo de ilícito (1), precede lógica e naturalmente a da forma especial de aparecimento da infracçáo em que se traduz o concurso de crimes (2). Enquanto a delimitaçáo daquela constitui tarefa da responsabilidade do legislador, a afirmaçáo ou negaçáo deste é da responsabilidade do juiz a quem, competindo a interpretaçáo da lei, cabe identificar as relaçóes que intercedem entre as disposiçóes legais violadas e dizer se essas relaçóes sáo tais que impóem o recuo de uma delas perante a preponderância ou a maior amplitude de protecçáo proporcionada pela outra.

Ora, a decisáo proferida pelo acórdáo recorrido, ao julgar que aqueles concretos arguidos cometeram, em concurso real, aqueles dois crimes, tem como pressuposto necessário a admissáo de que os autores do crime precedente náo estáo excluídos do círculo de possíveis autores do crime de branqueamento, contradizendo, deste modo, o dispositivo do acórdáo fundamento. Só pode, de facto, ser punido pela prática, em concurso real, de dois crimes quem puder ser autor de ambos. Se o autor do crime precedente náo puder ser autor do pós -delito, fica irremediavelmente afastada a possibilidade de, em relaçáo a ele, se...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT