Acórdão nº 874/20.9GAVNF.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 17-04-2023

Data de Julgamento17 Abril 2023
Ano2023
Número Acordão874/20.9GAVNF.G1
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.
Nos presentes autos, com o número 874/20...., que corre termos no Tribunal Judicial ..., Juízo Local Criminal ..., foi proferida sentença em 12/7/2022 que decidiu, para além do mais, absolver o arguido AA da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347º, n.º 1, do Código Penal e condená-lo pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, n.º 1, 155º, n.º 1, al. c), por referência ao art. 132º, n.º 2, al. l), do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, perfazendo o montante de 600,00 (seiscentos) euros.

2.
Não se conformando com o decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1.Por douta sentença proferida pelo Juízo Local Criminal ..., no Processo n.º 874/20...., o BB decidiu:

1.1. absolver o arguido AA da acusação da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347°, n.º 1, do Código Penal;

1.2. condenar o arguido, AA, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153°, n.º 1, 155°, n.º 1, al. c), por referência ao art. 132°, n.º 2,al.l),do Código Penal, na pena de120(cento e vinte)dias de multa à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, perfazendo o montante de 600,00 (seiscentos) euros;

1.3. condenar, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo, que fixo em 3 U'sC, e nos demais acréscimos legais que fixo no mínimo legal.
2. Ora, desta decisão recorre o arguido, ora Recorrente, por dela não concordar, tendo o presente Recurso como objeto o teor da douta sentença acima identificada.

3. São duas as questões colocadas pelo Recorrente: da nulidade da sentença1 e da extinção do procedimento criminal2.

4. Da nulidade da sentença 1:

4.1. Ao Recorrente era imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º n.º 2 al. l) todos do Código Penal (doravante CP); e de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º 1 do CP.
4.2. Em sede de audiência de discussão e julgamento foi homologada a desistência de queixa efetuada pelo ofendido, CC, e que foi aceite pelo ora Recorrente e, consequentemente, foi declarado extinto o procedimento criminal instaurado nos autos relativamente ao crime de injúria agravada. Continuou, assim, a lhe ser imputada a prática do crime de resistência e coação sobre funcionário.

4.3. Acontece que, o Recorrente foi absolvido do crime de resistência e coação sobre funcionário, mas condenado pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 al. c), por referência ao artigo 132.º n.º 2 al. l) do CP, crime este que não lhe era imputado na acusação.
4.4. Salvo devido respeito, não podemos concordar com a douta decisão.

4.5. Como diz a Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) no n.º 5 do artigo 32.º o processo penal tem estrutura acusatória.

4.6. A estrutura acusatória do processo implica, por um lado, a distinção entre instrução, acusação e julgamento, e por outro lado, a vinculação do julgador ao tema do processo que lhe é trazido pelo acusador. O juiz do julgamento só pode pronunciar-se sobre os factos que lhe são trazidos pelo Ministério Público. É nesse sentido que se diz que a estrutura acusatória do processo implica também o princípio da acusação ou o princípio da vinculação temática.

4.7. Assim no iter processuale a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objeto do processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se entende consubstanciarem um crime, estabelecendo assim os limites à investigação do tribunal. É nisto que se traduz o princípio da vinculação temática (cfr. Frederico Isasca in Alteração Substancial de Factos e sua relevância no processo penal português, pág. 54).

4.8. Assim se garante que o arguido não seja surpreendido com novos factos ou novas qualificações jurídicas, com os quais não contava, nem podia contar.

4.9. O objeto do processo tem de manter-se o mesmo durante o iter processuale. Sendo que, é na impossibilidade de ultrapassar o objeto do processo que radica o princípio da vinculação temática.

4.10. Salvo melhor entendimento, entende o Recorrente que a decisão proferida para além de comprometer os princípios supracitados, viola o princípio fundamental do contraditório, bem como as garantias de defesa do arguido, constituindo, por isso, decisão-surpresa.

4.11. O direito ao contraditório tem consagração constitucional no artigo 32.º da CRP e consagração legal no artigo 3.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), sendo a pedra basilar para um processo equitativo e justo.

4.12. Conforme refere Gil Moreira dos Santos in O Direito Processual Penal, 2002, págs. 58 e 59, o princípio do contraditório “tem a ver com o jogo de ataque e resposta em que consiste acção e defesa ao longo do processo, de modo a que […] as partes tenham possibilidade de influir em tudo o que esteja em efectiva ligação com o objecto da causa”.

4.13. O princípio do contraditório no processo penal, pois não se trata de um ónus de contradizer, mas do direito de contradizer. O arguido tem direito a se defender da acusação.

4.14. Em suma, o processo de tipo acusatório “carateriza-se essencialmente por ser uma disputa entre duas partes, a acusação e a defesa, disciplinada e decidida por um terceiro, o juiz ou tribunal, que, ocupando uma situação de independência relativamente ao acusador e ao acusado” não pode nem promover o processo, nem condenar para além da acusação. (Cfr. Germano Marques da Silva in Direito Processual Penal Português, 2013, pág. 367)
4.15. Não obstante, o nosso processo penal aceita desvios ao princípio da estabilidade do objeto do processo desde a acusação ao julgamento nos casos e termos previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP, sem violação dos princípios do acusatório e do contraditório.

4.16. A alteração substancial dos factos (artigo 359.º do CPP) pressupõe uma diferença de identidade, de tempo ou espaço, que transforma o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, e a alteração não substancial (artigo 358.º do CPP) constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transforma o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas de modo parcelar e mais ou menos pontual e sem descaracterizar o quadro factual da acusação e sempre sem relevância para alterar a qualificação penal. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 07..., de 21.03.2007)

4.17. No caso sub judice estamos perante uma alteração da qualificação jurídica no âmbito da alteração não substancial dos factos, pelo que, se aplica o disposto no n.º 3 do artigo 358.º do CPP conjugado com o n.º 1 do mesmo preceito, uma vez que o tribunal a quo alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação.

4.18. Sucede que, se se verificar uma alteração da qualificação jurídica, isto é, se no decurso da audiência o tribunal não concordar com a qualificação jurídica vertida na acusação do Ministério Público, a alteração é comunicada ao arguido e é-lhe concedido o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358.º do CPP). Esta alteração da qualificação deve ser sempre comunicada ao arguido, ainda que ela se demonstre menos penosa para o arguido.

4.19. Na mesma linha defende Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2011, pág. 930) que a comunicação ao arguido da possibilidade da alteração da qualificação jurídica tem lugar durante a audiência de julgamento no tribunal de primeira instância, antes da decisão da alteração propriamente dita, que se verifica com a sentença. Assim considera porque entende que a comunicação visa permitir ao arguido uma modificação na sua estratégia de defesa, sendo que o contraditório fica cumprido depois e não antes da possibilidade de alteração.
4.20. No seu entender, a comunicação deve ser “precisa, com a indicação exacta da nova qualificação jurídica ou do novo facto. A comunicação deve ser feita ao defensor do arguido, mesmo que se trate de uma qualificação para uma incriminação menos grave.

4.21. Assim, a alteração da qualificação jurídica deve ser admitida desde que observadas que sejam determinadas formalidades e verificados que sejam determinados pressupostos, matéria que o CPP regula no artigo 358.º n.º 1 e 3.

4.22. Veja-se a este propósito o entendimento sufragado pelo Acórdão nº 669/05-1, de 10/05/2005 proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (supra transcrito).

4.23. Ora, no caso sub judice, o Recorrente só tomou conhecimento da alteração da qualificação jurídica quando foi notificado da sentença, sendo que sustentou toda a sua defesa num crime de resistência e coação sobre funcionário.

4.24. Mas na verdade, esta alteração da qualificação jurídica, realizada após a audiência de discussão e julgamento, isto é, no momento da decisão, viola as garantias de defesa, na medida em que todas as declarações prestadas pelo arguido sobre o objeto do processo, partiram do pressuposto de uma certa consequência jurídica, que, in casu, acabou por ser outra.

4.25. Ao arguido, de modo a não comprometer os seus direitos de defesa, deve lhe ser concedido um prazo para preparar a sua defesa e, querendo, exercer o contraditório, para não ser surpreendido pela nova qualificação. O que não aconteceu.

4.26. O acórdão do processo nº19/16...., de 22/02/2017, do Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que a falta de comunicação prévia do tribunal a quo da alteração da qualificação jurídica ao arguido para este se pronunciar sobre o novo...

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