Acórdão nº 820/23.8T9LRA.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 13-12-2023

Data de Julgamento13 Dezembro 2023
Ano2023
Número Acordão820/23.8T9LRA.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3)
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1. … a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) aplicou a "… Lda", a coima única de €2 800,00 (dois mil e oitocentos euros), pela prática das seguintes contraordenações:

a) Falta de informação pré-contratual nos contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento comercial, no que respeita à existência de livre resolução e respetivo prazo para o exercício do direito, prevista no artigo 4.º, n.º 1, alínea l), conjugado com o artigo 10.º, n.º 1 ambos do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, em vigor à data dos factos, e punível pelo artigo 31.º, n.º 2, alínea b), do mesmo Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, pela qual a Autoridade Administrativa aplicou a coima parcelar de € 2.600,00 (dois mil e seiscentos euros); e

b) Falta de informação para a concorrência leal na venda com redução de preço, especificamente falta de indicação de modo inequívoco da data de início e período de duração das vendas com redução de preço, prevista no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 109/2019, de 14 de Agosto e punível pelo artigo 16.º do mesmo Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de Março, pela qual a Autoridade Administrativa aplicou a coima parcelar de €400,00 (quatrocentos euros)..

2. Não se conformando com essa decisão administrativa, a arguida impugnou-a judicialmente, …, tendo sido proferido despacho, ao abrigo do disposto no artigo 64º nº2 do RGCO, cujo dispositivo é o seguinte (transcrição):

«VI – DECISÃO:

Face ao exposto, e julgando totalmente improcedente o recurso apresentado pela arguida, …., decide-se manter a decisão da AUTORIDADE ADMINISTRATIVA ….»

3. Inconformada, a arguida "… Lda" interpôs o presente recurso, concluindo assim a respetiva motivação e petitório (transcrição):
«…
2. A douta decisão recorrida violou o art. 50.º do RGCO, ao não dar á arguida oportunidade de se defender dos factos que lhe são imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável.

5. Com efeito, a notificação á arguida nos termos e para os efeitos do artigo 50.º do RGCO fez-se logo no início do processo, antes das diligências de prova que vieram a ser feitas, vindo a decidir-se por uma modalidade de culpa (DOLO) que a indicada notificação não fazia supor, porque, disso, não foi dado conhecimento à arguida antes da decisão, tal como não lhe foi dado conhecimento de qualquer facto integrável nesse grau de culpa lhe foi alguma vez.

8. Para além de não constar do dos autos nenhum facto integrador de um qualquer elemento subjetivo do tipo, também nenhum facto provado consta da decisão administrativa que pudesse levar á condenação da arguida a título de Dolo.
9. Na verdade, a condenação da arguida a título de dolo, foi efetuada sem qualquer facto provado na decisão administrativa que permita concluir pela existência desse elemento subjetivo do ilícito o que, viola o exercício efetivo do direito de defesa da arguida, como aliás, resulta do disposto no artigo 243° do Código de Processo Penal (CPP) – aplicável no âmbito contraordenacional por força do art.º 41° do DL 433/82, de 27 de Outubro (RGCO) -, do qual não se retira que a entidade autuante possa imputar a infração a titulo de dolo sem imputar, comportamentos, situações que permitam captar “o elemento subjetivo” da mesma.

23. A douta sentença recorrida não cumpre com a obrigatoriedade de indicar se no caso em apreço vigora, ou não o princípio da proibição da “REFORMATIO IN PEJUS”, obrigação que decorre da lei que p. e p. o comportamento da arguida como contraordenação, sendo que tal omissão fere de nulidade a decisão ora recorrida.
24. Essa nulidade prejudica a arguida, porque sendo a proibição da REFORMATIO IN PEJUS a regra para afastar o condicionamento ao livre exercício do direito recorrer ou impugnar judicialmente a decisão condenatória, a existência de proibição dessa natureza aporta essa condicionante, decisiva para a decisão da arguida de recorrer ou não.

26. A decisão administrativa, não indicou as normas que previam a conduta da arguida como contraordenação nem a norma pela qual puniu o arguido, o que a feriu de nulidade insanável, de conhecimento oficioso pelo tribunal , tendo a 1ª instância suprido essa omissão sem sequer, previamente, notificar o arguido para se pronunciar sobre a mesma pelo que também esta decisão se encontra ferida de nulidade.
…»

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso.

Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[1], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

Note-se que tais disposições se mostram aplicáveis ao Processo contraordenacional, por força do disposto no artigo 41º nº1 do RGCO.

Assim, o Tribunal de Recurso conhece apenas da matéria de Direito, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as enumeradas supra, mormente as nulidades da sentença e os vícios elencados no artigo 410º do Código de Processo Penal.

Atentas as conclusões formuladas pela Recorrente as questões a decidir são as seguintes:

1ª – Saber se ocorre nulidade decorrente da violação do disposto no artigo 50º do RGCO (Decreto-lei nº433/82 de 27-10) – [Conclusões 1. a 7.]

2º - Saber se ocorre nulidade decorrente da violação do disposto no artigo 58º do RGCO – [conclusões 8. a 15.]

3ª – Saber se ocorre nulidade da decisão judicial em recurso por violação do princípio da legalidade e por constituir uma “decisão surpresa” face à circunstância de incluir factos relativos ao elemento subjetivo que não constavam da decisão administrativa – [Conclusões 16. a 22.]

4ª – Saber se ocorre nulidade da decisão judicial por não cumprir a obrigatoriedade de informar a arguida se no caso dos autos vigora, ou não, o princípio da “reformatio in pejus” – [Conclusões 23. a 25.]

5ª – Saber se ocorre nulidade da decisão administrativa por a mesma não indicar as normas que preveem e punem as condutas que descreve e subsequente nulidade da decisão judicial por não lhe ser lícito fazer incluir tais normas – [Conclusões 26. a 29.]

Não obstante não ter sido invocado no recurso, cabe averiguar, oficiosamente, se ocorre o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal, aplicável ao processo de contraordenação, ex vi artigos 75º e 41º do RGCO.

2. Da decisão recorrida.

3. Apreciação do recurso.

No âmbito do recurso contraordenacional, o Tribunal da Relação posiciona-se como o Supremo Tribunal de Justiça se posiciona no processo penal, ou seja, funciona como tribunal de revista e apenas conhece da matéria de direito, exceção feita para os casos em que para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto claramente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias, oficiosamente, ou seja, por sua iniciativa, decida conhecer dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Como bem se salienta no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de abril de 2012[2] (remetendo-se para a breve, mas esclarecedora, referência ao nascimento e evolução do direito das contraordenações que aí é feita):

O regime geral das contraordenações e coimas [DL n.º 433/82 de 27-10] apresenta uma nítida autonomia face ao Código Penal, decorrente da valoração e opção política do legislador em resultado da diversidade ontológica entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, da natureza da censura ético-penal correspondente a cada um e da distinta natureza dos órgãos decisores.”

Tal distinção reflete-se sobremaneira no que concerne ao princípio da culpa.

Como bem assinala o Prof. Augusto Silva Dias[3], “O princípio da culpa no direito das contra-ordenações conhece uma maior flexibilidade dogmática e probatória relativamente ao direito penal”.

Com efeito - sustenta o mencionado Autor - “Para esta flexibilidade concorre a circunstância de o parâmetro normativo no Direito das Contra-Ordenações ser constituído pelo papel social: no centro da imputação subjectiva e da censura estão as representações, procedimentos e comportamentos típicos do papel em cada sector da actividade económica e social: o empresário, o contribuinte, o condutor, o intermediário financeiro, etc., diligentes e criteriosos. O papel é densificado mediante o conjunto de deveres, práticas e usos que regulam o exercício de cada sector de actividade e se espera que cada participante cumpra ou adopte (...). No plano da imputação subjectiva, em particular na negligência, o papel fornece o padrão de cuidado cujo incumprimento constitui o desvalor da acção. No plano da culpa, a censura tem o sentido de uma admonição ou reprimenda social, de um “... mandato ou especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas” (...) e o conteúdo ou objecto da censura é o desempenho defeituoso do papel, ou seja, o desvio relativamente ao procedimento-padrão no sector da actividade em causa (...) . A intensidade da reprimenda variará consoante esse desvio seja maior ou menor”.

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