Acórdão nº 8/23.8GBABT-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 2023-05-25

Ano2023
Número Acordão8/23.8GBABT-A.E1
ÓrgãoTribunal da Relação de Évora
I – Relatório
a) Tendo sido agendada data para julgamento em processo sumário, no Juízo Local Criminal de …, de AA, nascido em … de 1959, cidadão do Reino Unido, acusado da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no artigo 292.º, § 1.º do Código Penal, a Mm.a Juíza proferiu despacho liminar com o seguinte teor

«Foram os presentes autos apresentados para julgamento sob a forma especial sumária no dia de hoje, 24.01.2023.

***

Após o primeiro contacto com os autos, na presente data, afigura-se-me que:

a) A constituição de arguido tem menções em língua portuguesa e inglesa;

b) Resulta do TIR que o arguido prestou TIR em língua inglesa, onde apenas está traduzido as obrigações decorrentes do TIR e constantes do art.º 196, n.º 3 do C.P.P., estando o demais em língua portuguesa.

c) Tal TIR apenas está assinado pelo militar da GNR e pelo próprio arguido.

d) Não estava acompanhado de intérprete quando foi notificado para comparecer em Tribunal, cujo documento está redigido em língua portuguesa, apesar de o arguido ter assinado tal documento (o que não permite concluir que o mesmo percebeu o teor da notificação, até porque o mesmo não compareceu no DIAP cfr. ref.ª …).

e) O mesmo sucede do teor das notificações nos termos do art 39º da Lei 34/2004, de 29 de julho, auto de libertação;

Dispõe o art.º 64, n.º 1 al. d) que:

É obrigatória a assistência do defensor: (…) d) em qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída.»

Dispõe o art.º 119.º, al. c) do CPP que «Constituem nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas noutras disposições legais: (…) c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência:»

Uma vez que o arguido, nos termos e fundamentos que antecedem, não prestou TIR de forma válida e eficaz bem como as suas notificações até ao despacho de acusação e onde se designou data para se apresentar em Tribunal para ser submetido a julgamento (11.01.2023 cfr refª …), não poderiam ser feitas em língua portuguesa, mas sim, em língua inglesa ou na presença de um interprete, nos termos do art.º 92.º, n.º 2 do C.P.P., torna-se necessário reparar todo o processado até à prolação do despacho de 11.01.2023, nomeadamente que:

a) o arguido preste novo TIR na presença do seu Defensor, a realizar pelo OPC, devendo este solicitar a nomeação para o ato ou convocar o defensor oficioso para estar presente;

b) a constituição de arguido seja toda redigida em língua inglesa;

c) se proceda à notificação nos termos do artº 39º da Lei 34/2004, de 29 de julho também em língua inglesa.

Como é apodítico, tal não pode ser realizado dentro dos prazos do artº 387º, nº 7 do CPP, ainda que lhe seja atribuído o caráter urgente, nos termos do nº 8 do mesmo preceito legal, pois as traduções necessárias nunca se completarão no prazo previsto no nº 2, al. c) do mesmo preceito legal, dado que os factos foram praticados a 10.01.2023.

Por todo o exposto, nos termos do artº 390º, nº 1, al. b) do CPP, importa remeter os presentes autos ao MP para a tramitação sob outra forma processual.

Notifique.»

b) Inconformado com esta decisão, apenas na parte que se refere aos efeitos das nulidades declaradas, dela recorre o Ministério Público, com as seguintes conclusões:

«1. Não vem o presente recurso interposto da decisão de reenvio do processo sumário a outra forma processual, em respeito ao AUJ 8/2014, de 12 de Junho.

2. Antes se recorre, por se discordar do despacho que determinou a repetição de actos já legalmente realizados no inquérito, ordenando reparação de todo o processado em sede de inquérito, mormente quanto à constituição de arguido, prestação de TIR, notificação para estar presente em Tribunal, notificação nos termos do artigo 39º da Lei 34/2004, de 29 de Julho, por entender ser obrigatória a presença de defensor em tais actos, ao abrigo do disposto no artigo 64º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Penal ou a presença de intérprete e tradução.

3. O Ministério Público deduziu acusação pública em processo sumário contra o arguido AA imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1 alínea a) do Código Penal.

4. Aquando o recebimento da acusação a Mm.a Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:

( … ) (1)

5. Do despacho em crise resulta que a Mm.a Juiz entende existir uma "patologia" que afecta os autos, não tendo realizado audiência em processo sumário.

6. Contudo, o alegado "vício" de que padecerá a ausência de defensor aquando da prestação de TIR, a constituição de arguido na íntegra na língua inglesa e a notificação em inglês, nos termos do artigo 39º da Lei 34/2004, de 29 de julho, não resulta de forma clara e inequívoca do despacho recorrido, bem como, não resultam as eventuais consequências processuais dos citados "actos", apenas a mesma aludindo a uma "reparação", sem que o alegado "vício" tenha sido declarado.

7. Mas ainda que assim não fosse, não pode, em nosso entender, a Mm. a Juiz a quo declarar que a prestação de TIR e a constituição de arguido padece de "patologia" e ordenar ao Ministério Público a sua reparação, pois a matriz constitucional do processo penal, com a sua estrutura acusatória e com a atribuição ao Ministério Público do exercício da acção penal orientado pelo princípio da legalidade e com a autonomia desta Magistratura (artigo 219º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), sempre impediria o entendimento sufragado no despacho recorrido.

8. O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 61º, 92º, 122º, 123º, 311º do Código de Processo Penal pois interpretou estas normas em violação do disposto nos artigos 32º e 219º da Constituição da República Portuguesa.

9. Assim, também, Paulo Pinto de Albuquerque ("Comentário do Código de Processo Penal", UCE, 2a edição actualizada, PS. 790/791) que, em anotação ao artigo 311º defende que "pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (...) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito (...)" (neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/02/2013, Processo nº406/10.7GALNH-A.L1-5, Relator: Juiz Desembargadora Alda Tomé Casimiro).

10. Não existe, in qualquer "patologia" que afecte os autos, pelo que não podia a M.ma Juiz proferir o despacho proferido, sob pena de violar o disposto nos artigos 32º e 219º da Constituição da República Portuguesa no atinente à autonomia da intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, "não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção" (Cfr. o acórdão do STJ, de 27.04.2006, in www.dgsi.pt),

Com efeito,

11. Ao que acresce, os autos não enfermam de qualquer patologia, porquanto as garantias de defesa do arguido e o disposto no artigo 64º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Penal encontram-se plenamente cumpridos.

12. O cidadão inglês AA foi constituído arguido nessa mesma data 10 de Janeiro de 2023, tendo-lhe sido entregue auto da constituição de arguido redigido em inglês, onde constam elencados todos os direitos que assistem ao arguido ["Procedual rights, Arto 61/1 do CPP)"] e ainda os deveres que sobre o mesmo impedem ["Procedural duties, Arto 61/1 do CPP)"], cfr resulta de termo utilizado pela Guarda Nacional Republicana, redigido na língua inglesa e constante de fls. 19 e 20, regularmente assinado pelo arguido e pelo militar.

13. O cidadão inglês AA prestou Termo de Identidade e Residência, tendo-lhe sido comunicadas todas as obrigações decorrentes da prestação de TIR e foi-lhe entregue Termo de Identidade e Residência redigido em língua inglesa, onde se encontram elencadas na língua inglesa, as obrigações decorrentes de tal medida de coacção, nos exactos termos constantes de fls. 21, regularmente assinado pelo arguido e pelo militar.

14. A fls. 34 consta despacho de validação da detenção do arguido em flagrante delito e validação da constituição de arguido, e em face da possibilidade de o arguido não entender a língua portuguesa, pelo Ministério Público foi determinado de imediato que se procedesse à indicação de intérprete idóneo e que se procedesse a nomeação de defensor, devendo ambos comparecer de imediato nos serviços do DIAP, o que sucedeu.

15. Perante a presença da I. Defensora e da Sra. intérprete, e perante a ausência do arguido, a I. Defensora requereu prazo para defesa, tendo então sido designado o dia 24 de Janeiro de 2023, pelas 11h para realização de audiência de julgamento em processo sumário.

16. O arguido AA foi notificado, por meio de contacto pessoal por OPC, do teor de notificação para comparência devidamente traduzida para a língua inglesa, de que se encontrava notificado para estar presente no dia 24 de Janeiro de 2023, pelas 11h no Juízo Local Criminal de …, bem como foi notificado do teor integral da acusação já traduzida para língua inglesa, cfr notificação junta a fls. 63 a 67.

17. A notificação por meio de contacto pessoal por OPC, na língua inglesa, foi regularmente efectuada na pessoa do arguido AA em 17 de Janeiro de 2023, cfr. fls. 67.

18. Não assiste razão, nem legitimidade à M.ma Juiz para determinar que o Ministério Público "convalesça patologias" que inexistem, nem à luz de se invocar uma qualquer nulidade que no caso não existe.

19...

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