Acórdão nº 7971/20.9T9LSB.L1-9 de Tribunal da Relação de Lisboa, 11-04-2024

Data de Julgamento11 Abril 2024
Ano2024
Número Acordão7971/20.9T9LSB.L1-9
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – RELATÓRIO
Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 2) foi proferida sentença em 20 de outubro de 2023, que contém o seguinte dispositivo (transcrição):
«a) condenar o Arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, nº 1, e 183º, nº 1, a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 10€, no montante de 2.400€;
b) fixar 160 dias de prisão subsidiária (art.º 49º, nº 1, do C. Penal);
c) condenar o Arguido na taxa de justiça que se fixa em duas UC, e nas legais custas.
(…)»
*
O Arguido recorreu, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«a. O Tribunal é incompetente em razão do território, porquanto o Assistente residia na área da Comarca de Lisboa Norte aquando dos factos e seu conhecimento, como ainda reside hoje, pelo que, constituindo exceção de conhecimento oficioso, impõe o respetivo conhecimento e a remessa dos autos para a fase de inquérito, a realizar no DIAP de Loures;
b. Normas violadas Arts. 7, nº. 1, 19 nº. 1 do Código Penal e artigo 38 nº. 5 da lei de imprensa (2/99 de 13 de janeiro), por a.a. e artigo 32 do CPP.
c. O processo é nulo por falta no processo físico de documentação admitida e não restringida, devendo, em consequência, ser considerada relevante para a boa decisão da causa, e ainda por falta de descarga das gravações das duas últimas sessões do julgamento.
d. Normas violadas Ats. 101 nº. 4 e 120 nº. 2 d) do CPP e art.º 28 nº. 1 da Portaria nº. 280/2013, de 26 de agosto;
e. A frase sob destaque na acusação encontra-se presente numa oração frásica subordinante, e, por isso, não assertivamente construída, sendo a referência a CC – “Ao contrário de uma das figuras principais do assassinato de DD, o …, CC” – usada apenas como contraste a estabelecer entre a visibilidade mediática deste e a invisibilidade, do identificado assassino de AA, EE, por aquele ser uma das figuras principais – tido como “mais conhecida” – do referido assassinato, tido como “caso” ou “processo” mediático em si próprio.
f. O Arguido não imputou qualquer tipo de facto jurídico ou juízo de valor ao Assistente, limitando-se a destacar a sua mediatização comparativamente com EE;
g. O arguido identifica claramente EE como autor da morte de AA, no texto em análise, bem se entendendo desse texto que não é CC o assassino;
h. É ainda um facto, publicamente conhecido, verdadeiro e largamente mediatizado, a associação de CC às pessoas e às circunstâncias em que teve lugar o homicídio de AA, bem como aos ideais políticos e sociológicos partilhados pelo grupo de pessoas envolvidas nos atos cometidos na noite de 10 para 11 de junho de 1995;
i. CC, possui o estatuto de figura pública, por largamente mediatizada,
j. CC reivindica para si próprio a liderança de grupos que professam a ideologia nazi,
k. Pelo que não goza – nem deve gozar, no caso concreto - de especial proteção da sua reputação, bem pelo contrário, estando mais exposto à crítica;
l. CC não goza, em concreto, de reputação positiva, por, como é profusamente sabido pelos media e vozes públicas, ter vindo a cometer atos criminosos desde há décadas e ter vindo a ser por eles condenado;
m. Por isso, não se lhe pode aplicar a generosa oferta da sentença recorrida, que o branqueia e sobre ele refere que devemos todos respeitar a sua reinserção social – inexistente.
n. Não sendo a não reinserção social do Assistente da responsabilidade do Recorrente e muto menos da frase sob análise;
o. Por tudo o que não se encontra preenchido o elemento objetivo e nem o subjetivo
do tipo de crime previsto no artigo 180 nº. 1 do Código Penal, nem os elementos da agravação constante das alíneas a) e b) do nº. 1 do art.º 183 do mesmo Código;
p. E mesmo que se considere que se acha preenchido o tipo previsto no nº. 1 do artigo 180 do Código Penal, ocorrem condições de não punibilidade, por se verificarem as eximentes das alíneas a) e b) do nº. 2 do mesmo artigo, isto é, o que BB escreveu no texto sob análise, é verdadeiro e realiza interesses legítimos contidos em direitos fundamentais,
q. Que são os seus, por se tratar de um militante antirracista, que vem reiteradamente expressando a sua militância em público, por via de intervenções corajosas, contundentes e assertivas.
r. Os direitos de personalidade de CC, não merecendo especial proteção face ao caso dos autos e à vida que decidiu livremente levar, não são hábeis a se sobrepor ao direito de liberdade de expressão de BB;
s. Ponderação que não foi feita, nem com recurso aos comandos vertidos na jurisprudência constante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recentemente acolhidos também pela jurisprudência portuguesa,
t. Nem com recurso ao juízo de prognose proposto aplicar pela jurisprudência mais recente do STJ, face à mudança de paradigma português, no que respeita à colisão dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e à honra.
u. Se feita tal ponderação ou um juízo de prognose, daí resultaria a absolvição de BB, ou, em contrário, a violação do artigo 10º. da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
v. Uma vez que nem sequer foram demonstrados no processo factos que permitam dar por verificada alguma das restrições possíveis ao direito de liberdade de expressão do arguido, elencadas no nº. 2 do artigo 10º da referida Convenção.
w. Normas violadas – Arts. 10º. nºs. 1 e 2 e 46 nº. 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 11º. Da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; artigo 8º. Nº. 2, 16 nº. 2, 37 e 38 da CRP; arts. 180 nºs. 1 e 2 e 183 nº. 1 alíneas a) e b) do Código Penal.
Por tudo o que,
Quer o processo desça para reenvio para inquérito, ou repetição do julgamento, quer tal não aconteça, a sentença recorrida deve ser integralmente revogada, por não ter alcançado o sentido das conclusões que acima se formularam, devendo, em consequência, ser aquela substituída por decisão que proceda à absolvição de BB, do crime pelo qual vem condenado, assim se adequando a decisão do caso concreto às exigências atuais, não o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas também do próprio Supremo Tribunal de Justiça Português.»
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando a final as seguintes conclusões (transcrição):
«1ª O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida e depositada a 20/10/2023, que condenou o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1 e artigo 183º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Cód. Penal, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 10 euros, no montante de 2.400 euros.
2ª Tendo em conta o âmbito do recurso fixado pelas conclusões apresentadas, pretende o recorrente que o tribunal não é competente, que o processo é nulo e que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime.
3ª Quanto à incompetência do Tribunal, afirma o recorrente a incompetência em razão do território destes Juízos Locais de Lisboa, dizendo que o assistente residia na área da Comarca de Lisboa Norte no momento em que tomou conhecimento dos factos, dizendo impor-se a remessa dos autos para a fase de inquérito.
4ª Nos presentes autos, a queixa foi apresentada pelo assistente contra o arguido junto do DIAP de Lisboa, indicando-se morada daquele em Lisboa (fls. 1 a 3 dos autos), local onde o arguido veio a prestar termo de identidade e residência (fls. 62). Terá sido na sua residência em Lisboa o local onde terá sido publicado o texto que constitui objeto destes autos, sendo certo que se trata também do local onde primeiramente houve notícia do crime.
5ª Ora, os factos dos autos foram praticados através da internet, mais concretamente na rede social ‘facebook’, pelo que, no início do processo, aquando da fixação da competência, o local em que foi produzida a publicação por parte do arguido é desconhecido, assim como será desconhecido o local em que o assistente leu aquela publicação. Com efeito, na atualidade a consulta de redes sociais através dos ‘smartphones’ pode ser realizada em qualquer lugar, pelo que não se afigura que seja determinável o local onde os factos foram praticados ou produzido o resultado típico.
6ª Assim sendo, face aos elementos de conexão com este Tribunal Judicial, nada há a apontar à fixação de competência em Lisboa, por ser o local de residência do arguido e onde houve primeiramente notícia do crime (artigos 7º do Cód. Penal, 19º e 21º do Cód. de Processo Penal).
7ª Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede como se viu ‘supra’, não estaria em causa qualquer nulidade insanável como bem resulta inequívoco da própria referência do recorrente ao artigo 32º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal. Resulta da alínea b) daquele artigo que “tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.”, pelo que, é manifesto que estaria em causa uma nulidade sanável que, não tendo sido tempestivamente invocada, se mostra sanada (artigos 120º, n.º 1 e 121º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal).
8ª Daqui não resulta, como é evidente, que o presente procedimento criminal não tivesse seguido regularmente os seus trâmites (artigos 262º a 264º, 276º, 283º e 284º, todos do Cód. de Processo Penal) até à fase de julgamento não se verificando qualquer motivo para o regresso dos autos à fase de inquérito.
9ª Finalmente, não se compreende a referência ao artigo 38º, n.º 5 da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro, aplicável à liberdade de imprensa. Com efeito, a publicação do arguido no âmbito destes autos não tem qualquer enquadramento nas noções constantes do artigo 9º e seguintes pelo que a Lei n.º 2/99, de 13 de
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