Acórdão nº 787/20.4PWLSB.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-06-27

Data de Julgamento27 Junho 2023
Ano2023
Número Acordão787/20.4PWLSB.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 787/20.4PWLSB, 924/20.9PBCSC, foi o arguido EP, com os sinais dos autos, acusado pela prática de nove crimes de ameaça, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, dois deles agravados também pelo disposto no artigo 86º nº 3 da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro; dois crimes de perseguição, p. e p. pelo artigo 154.º-A, n.º 1, do Código Penal e, a título de acusação particular deduzida pela assistente constituída nos autos, MR, pela prática de sete crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, também do Código Penal.
As acusações, pública e particular, concluem que o arguido deve ser declarado inimputável, nos termos do artigo 20.º do Código Penal, e que, dada a sua perigosidade no cometimento futuro de factos da mesma natureza, deve ser-lhe aplicada uma medida de segurança de internamento, em estabelecimento adequado, nos termos do artigo 91.º do mesmo compêndio legal.
Remetidos os autos para a fase de julgamento, foi proferido despacho de rejeição, por manifestamente infundadas, das acusações pública e particular deduzidas.
2. O Ministério Público e a assistente interpuseram recurso do despacho que rejeitou as acusações, finalizando as suas motivações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
2.1. Recurso do Ministério Público
a) No douto despacho recorrido fez-se uma incorreta interpretação e aplicação da Lei, nomeadamente do artigo 311º do Código de Processo Penal e dos artigos 20º e 91º do Código Penal.
b) As acusações - pública e particular - deduzidas contra o arguido não são manifestamente infundadas, mostrando-se ali devidamente elencados os factos ilícitos e típicos (crimes) praticados pelo arguido, a anomalia psíquica de que aquele padece (inimputabilidade) e a verificação da propensão para a prática de atos da mesma natureza que permitem a elaboração do juízo de perigosidade.
c) Não têm as acusações que recorrer ao habitual jargão jurídico “atuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por Lei Penal” para que se impunha ao arguido uma medida de segurança, porquanto os art.ºs 20º e 91º do Código Penal a tal não obrigam.
d) Sendo o arguido inimputável em razão da perturbação psiquiátrica de que padece não é legítimo no despacho de acusação ser imputada a prática dos factos a título de culpa (dolo), já que por força daquela doença o arguido não possuía capacidade de se determinar de acordo com a avaliação que realizou relativa a ilicitude da sua conduta.
e) Anote-se que o arguido EP padecia e padece de uma perturbação psiquiátrica denominada “esquizofrenia paranoide” que lhe provoca descompensações quando não medicado, situação em que atuou aquando da prática dos factos acima descritos e que lhe limitou fortemente a capacidade de discernimento (a capacidade de avaliar a ilicitude dos factos) e de determinação (a capacidade de se determinar de acordo com a eventual avaliação da ilicitude que fosse capaz de fazer, ou seja, a capacidade de agir de outro modo).
f) Ora, prevê o art.º 311º do Código de Processo Penal no nº 2 al. c) que “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: De rejeitar à acusação, se a considerar manifestamente infundada, sendo que o nº3 do mesmo preceito estabelece na alínea b) que “Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: Quando não contenha a narração dos factos;”
g) Ora, encontrando-se devidamente descritos nos despachos de acusação «os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma medida de segurança», a saber, «o tempo, o lugar e a motivação da sua prática», «o grau de participação que o arguido neles teve» e «as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» bem como «as disposições legais aplicáveis», não se vislumbra que se verifique qualquer insuficiência do despacho de encerramento de inquérito.
Termos em que requer que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente seja o despacho recorrido substituído por outro despacho onde se receba as acusações pública e particular deduzidas nos autos pelo Ministério Público e pelo assistente.

2.2. Recurso da assistente
1ª – A Meritíssima juíza “ a quo ” rejeitou a acusação particular deduzida pela assistente, bem como a acusação pública, por as considerar manifestamente infundadas ao abrigo do disposto no artigo 311 nº 2 al. a) e nº 3 al. b) do CPP, em razão de as mesmas não conterem a narração do elemento subjectivo dos tipos de ilícito imputados, ou seja, o dolo. Ora,
2ª – O arguido é inimputável perigoso em razão da perturbação psiquiátrica de que padece (esquizofrenia paranóide), conforme Relatório Pericial junto aos autos, doença que o impede de avaliar a ilicitude dos actos praticados no momento em que actua e de se determinar de acordo com essa avaliação. Assim,
3ª - O arguido não podia querer praticar os actos ilícitos típicos, porque não estava capaz de avaliar essa ilicitude e se determinar de acordo com tal avaliação, daí que o dolo não pode ser descrito na acusação, sob pena de estarmos a efetuar a descrição da conduta de um agente imputável.
4ª – Da acusação deduzida contra inimputável com vista à declaração da sua inimputabilidade e aplicação, em razão de perigosidade, de uma medida de segurança, apenas terão de constar a descrição objectiva dos factos típicos dos ilícitos imputados, dos que fundamentam a inimputabilidade (a anomalia psíquica) e também a perigosidade.
5ª – Para efeitos de aplicação do disposto no artigo 91º nº 1 do CP, o facto ilícito típico apenas integra a conduta objectiva prevista no tipo legal de crime imputado, não abrangendo os elementos subjectivos do mesmo, por o agente não ser capaz de culpa.
6ª – A acusação particular deduzida contém a descrição dos ilícitos típicos praticados pelo arguido, a anomalia psíquica de que padece, ou seja, a inimputabilidade, e os que fundamentam a sua propensão para a prática de actos da mesma natureza, que permitem a elaboração pelo tribunal do juízo de perigosidade, pelo que a mesma se mostra correctamente deduzida, em obediência ao disposto no artigo 283º nº 3 al. b) e artigo 285º nº 3 do CPP, e artigos 20º e 91º do CP, bem assim como também a acusação pública.
7ª – O despacho recorrido não fez, assim, correcta interpretação e aplicação da Lei, tendo violado o disposto no artigo 311º nº 2 al. a) e nº 3 al. b) do CPP e artigos 20º e 91º do CP.
Termos em que,
- Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência,
- ser o despacho recorrido revogado e determinada a sua substituição por outro que receba a acusação particular deduzida pela aqui assistente, bem como também a acusação pública deduzida pelo MP, a que a assistente aderiu, com o que que fará esse Venerando Tribunal a costumada JUSTIÇA!
3. O arguido respondeu aos recursos, pugnando pelo seu não provimento, formulando as seguintes conclusões:
1. Não merece qualquer censura o despacho proferido pelo Tribunal a quo rejeitando, por manifestamente infundadas, as acusações pública e particular deduzidas, nos termos do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
2. Ambas as acusações falham em indicar os factos em que se traduz o dolo, como elemento subjectivo dos tipos de ilícito imputados ao arguido, apenas vindo descritos os factos integradores dos pressupostos de aplicação de uma medida de segurança relativos à inimputabilidade e à perigosidade, bem como a materialidade da conduta (os concretos comportamentos que se alega terem sido adoptados pelo arguido), mas já não vêm narrados os factos integradores seja do elemento intelectual, seja do elemento volitivo atinentes aos tipos de ilícito em questão, os quais eram imprescindíveis para que a imputação feita ao arguido correspondesse à da prática de factos ilícitos típicos, aos quais se pudesse ou devesse excluir a culpa, em razão de inimputabilidade, por anomalia psíquica, conducente à aplicação de medida de segurança.
3. O direito penal tem por finalidade perseguir factos e não pessoas.
4. As medidas de segurança não podem ter como desígnio atingir o que não se conseguiu com recurso ao internamento compulsivo, nomeadamente no que ao tratamento da doença diz respeito.

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo Procuradora-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que os recursos merecem provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar e, uma vez colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem
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