Acórdão nº 778/23.3T8PDL-A.L1-4 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-01-24

Ano2024
Número Acordão778/23.3T8PDL-A.L1-4
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
AA intentou contra Santa Casa da Misericórdia de X acção sob a forma de processo comum formulando os seguintes pedidos:
“a) Ser anulada a decisão da Ré de transferência do seu local de trabalho;
b) Ser declarado nulo o processo disciplinar instaurado contra a Autora ou, caso assim não se entenda,
c) Ser anulada a decisão da Ré que aplicou à Autora a pena disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade por 60 dias;
d) Caso a Autora tenha cumprido a referida sanção à data da sentença, a Ré deverá ser condenada no pagamento à Autora dos montantes retributivos que esta não recebeu, mas que normalmente auferiria, caso não tivesse sido sujeito à dita sanção disciplinar, acrescido de juros à taxa legal, desde a data em que deveria ter sido auferida, até ao integral pagamento.”
A Ré contestou reafirmando que a Autora, com a sua conduta, violou os deveres laborais previstos nas alíneas b), c), e), h) e j) do artigo 128.º do Código do Trabalho e ainda o ponto 11 da Circular Informativa n.º DRS-CINF/2022/5, de 11 de Abril e pediu que a acção seja julgada improcedente com a sua absolvição do pedido.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e absteve-se o Tribunal a quo de identificar o objecto do litígio e de enunciar os temas da prova.
Foi proferido despacho saneador e fixado o valor da causa em €6.937,40.
Realizou-se a audiência de julgamento no âmbito da qual foi proferido o seguinte despacho:
“ Nos termos definidos nos arts.2.º, n.º 2, alínea a) e 6.º da Lei n.º 38.º-A/2023, de 2 de Agosto, denominada Lei da Amnistia, a sanção disciplinar que Santa Casa da Misericórdia aplicou a AA, no âmbito do procedimento disciplinar em causa nestes autos, de 60 dias de suspensão com perda de antiguidade e retribuição, por decisão proferida em 8 de Setembro de 2022, comunicada à Autora em 13 de Setembro de 2022 e, naturalmente por factos ocorridos em data anterior, encontra-se abrangida por este regime legal, sem que, tratando-se de uma sanção disciplinar, seja de impor, aqui, o requisito da idade, previsto no art.º 2.º, n.º 1 desta Lei. E está como tal amnistiada.
Neste sentido, reconhecendo o Tribunal a amnistia desta sanção disciplinar, e assim o declarando, defere-se o requerido pela Autora, julgando-se extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, especificamente quanto aos pedidos constantes das alíneas b), c) e d) do peticionado, prosseguindo a mesma quanto aos restantes.
Notifique.”
Inconformada com o despacho, a Ré recorreu e sintetizou as alegações nas seguintes conclusões:
“1. Os artigos 2º, n.º 2, al. b) e 6º ambos da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, devem ser interpretados com recurso aos elementos racional ou teleológico, elemento sistemático e elemento histórico na procura de encontrar o sentido mais conforme à constituição e aos princípios.
2. Na ordem jurídica portuguesa não há registo de alguma amnistia com âmbito laboral privado e apenas a amnistia da Lei 23/91 contemplou as infrações laborais, mas só as cometidas por trabalhadores de empresas públicas.
3. A amnistia é uma medida de clemência “simétrica da decisão de punir”; é “a contraface do direito de punir estadual”, pelo que apenas pode incidir sobre crimes e as respectivas penas e demais categorias punitivas públicas, incluindo infrações disciplinares dos funcionários do Estado e militares, incluído, excepcionalmente, os trabalhadores das empresas públicas.
4. O poder disciplinar, embora de cariz sancionatório, constitui uma excepção ao princípio da justiça pública, sendo as sanções disciplinares “penas privadas”, apenas sujeitas ao controlo jurisdicional a posteriori.
5. A natureza da amnistia, a história evolutiva do instituto, coerência sistemática do regime jurídico e a natureza das sanções disciplinares impõem que a norma do artigo 2º, n.º 2 al. b) e do artigo 6º da Lei nº 39-A/2023, seja interpretada no sentido de que apenas inclui as infrações disciplinares praticadas por trabalhadores ao serviço do Estado, organismos públicos e de empresas públicas.
6.A doutrina e a jurisprudência, admitindo a amnistia das sanções disciplinares de trabalhadores da esfera do Estado, põem em causa a constitucionalidade da extensão da amnistia às sanções disciplinares laborais no âmbito e entidades patronais privadas.
7. É, pois, inconstitucional a interpretação do artigo 2º, nº 2, al. b) e do artigo 6º da Lei nº 38-A/2023 no sentido de que abrangem as infracções disciplinares praticadas no âmbito de entidades patronais privadas, porquanto viola princípios e normas constitucionalmente consagradas, designadamente: artigo 2º (Estado de direito democrático); artigo 80º alínea c) (“Liberdade de iniciativa e de organização empresarial”); artigo 86, nº 2 (não intervenção do Estado nas empresas privadas).
8. Em qualquer caso, mesmo que assim se não entendesse, a coerência interna do diploma e o fim assinalado à amnistia impõem a conclusão de que todas as medidas de clemência têm como destinatários pessoas entre os 16 e 30 anos.
9. Assim, contrariamente ao decidido no douto Despacho recorrido, a amnistia nunca seria aplicável ao caso dos autos, dado que a Autora tem idade superior a 30 anos.
Nestes termos e nos mais de Direito, com douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido.
Porque só assim se aplicará o Direito
E se fará Justiça!”
A Autora contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
“ 1. As normas de amnistia têm natureza excecional e não admitem interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (cfr, Acórdão Acórdão STJ de 25-10-2001, disponível em www.gdsi.pt).
2. Aplicando as regras da hermenêutica jurídica e, como tal, presumindo que o legislador se exprimiu em termos adequados (artigo 9º nº 3 do C.Civil), perscrutando o sentido do elemento literal do disposto nos arts.2º, nº 2, alínea b), e 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (doravante Lei da Amnistia ou Lei 38-A/2023), verificamos que não é feita qualquer distinção entre infrações disciplinares abrangidas pelo seu regime.
3. Conforme a redação dos aludidos normativos, o legislador não identificou, nem diferenciou, as infrações praticadas, por um lado, por trabalhadores de empresas privadas e, por outro, por trabalhadores ao serviço do Estado, organismos públicos e de empresas públicas, sendo certo, também, que
4. Não cabe ao intérprete distinguir o que o legislador não distinguiu, não se lhe podendo substituir.
5. Encontrado o sentido do elemento literal das normas em causa, estas devem ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas, concluindo-se que a amnistia da Lei 38-A/2023 abrange todas e quaisquer infrações disciplinares laborais, sem qualquer distinção, máxime, as praticadas por trabalhadores de empresas e instituições privadas.
6. A inclusão de matéria disciplinar laboral comum no regime de amnistias, antes da Lei 38-A/2023, não foi apenas contemplada na Lei nº 23/91 de 4 de Julho, existindo, pelo menos, dois precedentes nesta matéria, designadamente, os constantes das Lei nº 17/85, de 17 de Julho e da Lei nº 16/86, de 11 de Junho não havendo (então, como agora) qualquer motivo ou fundamento legal para negar a amnistiabilidade das infrações disciplinares no domínio das relações laborais comuns.
7. O regime jurídico da relação laboral pública, tanto de um ponto de vista dogmático e no plano dos princípios, como das normas, tem evoluído no sentido, não apenas de se aproximar, como, até, de se equiparar ao regime do Código do Trabalho (cfr. Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, artigo 4.º).
8. O poder de amnistiar da Assembleia da República não se circunscreve às categorias punitivas públicas, podendo abranger infrações de direito privado, competência que foi, efetivamente exercida e decretada na Lei 38-A/2023.
9. Pela sua clareza e exposição em relação a este assunto, remetemos para o Acórdão STJ, de 20-01-1993( disponível na ligação: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt), quando afirma que, “não faz sentido negar a amnistiabilidade das infracções disciplinares no domínio das relações laborais comuns, porquanto as razões que justificam a amnistia daquelas infracções (infracções disciplinares cometidas pelos funcionários e agentes da administração central, regional e local) cabem inteiramente no âmbito desta.”
10. Ou seja, não existe fundamentação de Direito ou de facto, para que o elemento literal seja interpretado restritivamente. Acresce que,
11. Conforme consta do cit. Acórdão STJ, de 20-01-1993, aplicável mutatis mutantis, à situação em apreço e para cujos termos se remete em suma:
a. (…)são muitas as indicações constitucionais que apontam para uma concepção constitucional unitária das várias figuras sancionatórias (confere artigos 32, n.8 e 269, n.3 e que, por outro lado, tendem progressivamente a apagar as fronteiras entre as relações laborais de emprego público e as relações de trabalho reguladas pela lei comum do contrato de trabalho”.
b.”(…) a Constituição da República limitasse a atribuir competência à Assembleia da República para conceder amnistias, sem estabelecer qualquer concessão entre essa competência e a competência em matéria penal e sem impor qualquer restrição quanto ao âmbito dessa competência”.
c.”(…) podendo a amnistia abarcar infrações disciplinares cometidas por funcionários ou agentes da administração regional e local e até instituições dotadas de autonomia, como as universidades, é evidente que ela é extensiva a infracções que ao Estado não cabe punir, mas antes àquelas entidades, que gozam de autonomia relativamente ao Estado.”
12. Pelo exposto, a previsão do artigo 2º, nº 2, al. b) e do
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