Acórdão nº 771/20.8PAESP.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-01-19

Data de Julgamento19 Janeiro 2022
Ano2022
Número Acordão771/20.8PAESP.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. nº 771/20.8PAESP.P1

Acordam os juízes, em audiência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso do douto acórdão do Juízo Central Criminal de … (Juiz…) do Tribunal Judicial da Comarca de … que condenou AA…, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, e 25.º, a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa, na um ano e nove meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, devendo este prever medidas destinadas à manutenção de atividade laboral regular, visando a sustentabilidade e melhoria das condições económicas e capacidade em manter afastamento de grupos e contextos associados a práticas de desvio e ainda sujeita à regra de conduta de tratamento médico à problemática aditiva.

Da motivação deste recurso constam as seguintes conclusões:
«1 – AA… foi absolvido da prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo artigo24º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, tendo sido antes condenado pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 25º, do mesmo diploma legal.
2 – Ora, não pode concordar-se com tal subsunção legal, atendendo a que o arguido vendeu, consoante se deu como demonstrado, haxixe a BB…, portador de perturbação do desenvolvimento intelectual, comórbil com uma hiperactividade e défice de atenção (PHDA), evidenciado, de forma notória, dificuldades ao nível da fala e cognitivas, associados a um perfil de impulsividade, facto que o arguido conhecia. Por isso, é nosso entendimento que, não obstante concordemos que não estará preenchido o crime de tráfico de estupefacientes agravado, não pode afirmar-se que a ilicitude se encontra manifestamente diminuída.
3 – Acresce que o Tribunal concluiu nesse sentido sem que constasse qualquer facto que permitisse concluir pela ilicitude consideravelmente diminuída e sem que qualquer prova fosse efectuada nesse sentido.
4 - E tal circunstância deveria constar da matéria dada como demonstrada – isto é, para que se pudesse concluir nesse sentido, teria o Tribunal a quo que dar como demonstradas circunstâncias que, por si só ou conjugadas entre si, fizessem concluir pela ilicitude consideravelmente diminuída.
5 - Entendemos, assim, que o acórdão ora colocado em crise é nulo, nos termos do artigo 379º, n.º1, alínea c), do CPP, nulidade essa que expressamente se invoca, para todos os devidos e legais efeitos.
6 – Para que possa concluir-se pela consumação do crime p. e p. pelo artigo 25º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e seguindo o acórdão do S.T.J. de 12/03/2015, “a ilicitude exigida neste tipo legal tem de ser, não apenas diminuta mas, mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da acção e do resultado”. Ora, o Tribunal deu como demonstrado (e, no nosso modesto entendimento, bem, pois que foi o que resultou da audiência de discussão e julgamento), que o arguido vendeu haxixe a BB…, perfeitamente consciente da sua debilidade psíquica; acresce que lhe vendeu €5 de haxixe, a troco de um relógio no valor de cerca de €50!
7 – Seguindo os critérios plasmados no Acórdão do STJ de 23/11/2011, e se é inegável que não se verificam as circunstâncias previstas nas alíneas a) a g) mencionadas na referida decisão, o facto é que se verifica o circunstancialismo descrito na alínea h): objectivamente, verifica-se uma das circunstâncias a que alude o artigo24º, do mencionado diploma legal: BB… padece de uma debilidade cognitiva, visível, de que o arguido sabia; e, por outro lado, aproveitando-se de tal facto, vendeu-lhe €5 de haxixe a troco de um relógio no valor de cerca de €50.
8 – A ser assim, a conduta do arguido não permite a caracterização do tráfico de estupefacientes como sendo de “menor gravidade”, porquanto não pode, de todo, afirmar-se que a ilicitude se mostra consideravelmente diminuída.
9 – Com efeito, se concordamos que não é automática a aplicação do artigo 24º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, quando se verifique alguma das circunstâncias ali mencionadas e que, in casu, tratando-se de uma venda isolada, tendo o arguido actuado sozinho e tratando-se de haxixe, não poderá considerar-se como verificado o aludido crime agravado, já se discorda que alguém que vende estupefaciente a uma pessoa que sabe ter uma debilidade cognitiva, e por um preço dez vezes superior ao normal, integra o crime previsto e punido no art. 25.º. Neste sentido pode ver-se, a título de exemplo, o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 18/03/2020, cuja Relatora foi a Exma. Sra. Juiz Desembargadora Dra. Liliana Páris Dias, disponível em www.dgsi.pt.
10 – Nestes termos, deverá considerar-se que a conduta do arguido integra a prática do crime previsto e punido pelo artigo 21º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro.
11 – Quanto à pena a aplicar, tendo presente as finalidades da punição e o disposto no artigo 71º, n.º 2, do Código Penal, tendo presente a quantidade e qualidade das substâncias estupefacientes que o arguido detinha e vendeu, o facto de se tratar de haxixe, para consumo individual de pessoa com deficiência mental, que se tratou de uma conduta isolada e de pouco valor, que o arguido é consumidor de haxixe, tendo já sido condenado pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 40º, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, que está a trabalhar como operário fabril, entendemos que a pena justa e adequada será entre 4 anos e 2 meses a 5 anos de prisão.
12 – Tal pena, tendo em consideração as concretas circunstâncias do caso, o facto de estar a trabalhar, de se tratar de acto isolado, não repetido, deverá ser suspensa na sua execução, por igual período, ainda que sujeita a regime de prova, nos moldes referidos no Acórdão ora colocado em crise com que, nesta parte, se concorda.
13 –Ao condenar o arguido pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 25º, do DL 15/93 de 22 de Janeiro, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 21º, 25º e 24º, todos do referido diploma legal, devendo, por isso, ser substituído por outro que condene o arguido pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 21º, do mencionado decreto-lei.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões das motivações dos recursos, as seguintes:
-saber se a factualidade provada no douto acórdão recorrido integra a prática não de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, e 25.º, a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, mas antes um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n. 1, desse diploma, devendo, em consequência, ser agravada a pena em que o arguido foi condenado.
Não está em causa, ao contrário do que se alega na motivação do recurso, a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 379.º. n.º 1, c), do Código de Processo Penal, mas, antes, a qualificação jurídica da factualidade provada.

III - Da fundamentação do douto acórdão recorrido consta o seguinte:
«(…)
2- Fundamentação
2.1 - Matéria de facto provada
1. O arguido é consumidor de estupefacientes, nomeadamente de canábis, há vários anos.
2. À data dos factos que abaixo se descrevem, o arguido não exercia qualquer actividade profissional remunerada, vivendo da ajuda dos pais, suportando as despesas associadas ao consumo de estupefacientes com as quantias que aqueles lhe entregavam e com as que recebia da actividade de arrumador de carros na cidade de ….
3. Em finais de Setembro de 2020, o arguido conheceu BB….
4. BB…, nasceu a .. de … de 2002, contando à data com 17 anos, padecendo de uma Perturbação do Desenvolvimento Intelectual, comórbil com uma hiperactividade e défice de atenção (PHDA), evidenciado, de forma notória, dificuldades ao nível da fala e cognitivas, associados a um perfil de impulsividade.
5. BB…, era também consumidor de cannabis.
6. Logo após o conhecer, o arguido apercebeu-se das características comportamentais e cognitivas evidenciadas por BB…, assim como se apercebeu que se tratava de pessoa com hábitos de consumo regulares, manifestando necessidade em adquirir estupefaciente para os seus consumos.
7. No dia 09 de Outubro de 2020, por cerca das 10H30, quando o arguido se encontrava na Avenida…, da cidade de … foi, de novo, abordado por BB…, que lhe solicitou que lhe cedesse estupefaciente para seu consumo ao que o arguido, aceitou em o fazer, mas exigindo-lhe o pagamento do produto.
8. Por BB...não ter consigo qualquer quantia monetária para pagamento do mesmo, propôs ao arguido, como forma de pagamento, a entrega de um relógio que trazia consigo, da marca Guess, cor prateada
9. O arguido, ao ver tal relógio, logo percebeu que o mesmo teria um valor muito superior ao valor do estupefaciente que se propôs a vender-lhe, aceitando tal forma de pagamento.
10. Nessa sequência, o arguido entregou-lhe uma porção de canábis, resina, vulgo haxixe, no valor de €1,00 e BB…, entregou-lhe o referido relógio, como pagamento.
11. Nessa data, o descrito relógio tinha o valor venal de €50,00.
12. O arguido agiu perfeitamente ciente que BB… apresentava uma diminuição psíquica, decorrente das patologias de que padecia e visivelmente manifestava, e que o mesmo era consumidor de estupefaciente.
13. Não obstante disso saber, o arguido não se coibiu de lhe vender estupefaciente, agindo movido pela vontade de alcançar ganhos à custa de BB…, como conseguiu, abusando da sua juventude, características psíquicas que apresentava e da necessidade em consumir estupefaciente que apresentava.
14. O arguido conhecia a natureza estupefaciente das substâncias que detinha e que vendeu a BB…, assim como sabia que a cedência por qualquer título a
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT