Acórdão nº 73/20.0NJPRT.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2022-05-25

Data de Julgamento25 Maio 2022
Ano2022
Número Acordão73/20.0NJPRT.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Processo nº 73/20.0NJPRT.P1

Relatora: Amélia Catarino

Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Colectivo) nº 73/20.0NJPRT.P1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto, juiz 1, foi proferido Acórdão que decidiu julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:
a) condenar o arguido AA pela autoria de um crime de abandono de posto, previsto e punido pelo artigo 66º, nº 1, al. e), do Código de Justiça Militar, na pena de um mês e quinze dias de prisão, a qual se substitui por 45 (quarenta e cinco) dias de multa à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz a quantia de €360.
b) condenar o arguido BB pela autoria de um crime de insubordinação por desobediência, previsto e punido pelo artigo 87º, nº 1, da alínea g), do Código de Justiça Militar, na pena de quatro meses de prisão, a qual se substitui por 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz a quantia de €960,00 (novecentos e sessenta euros).

Inconformados os arguidos vieram interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. O crime de natureza militar exige que que se alegue e prove que o arguido sabia que o seu comportamento colocaria em causa a prontidão da instituição ou a afectação do cumprimento da sua missão.
2. O bem jurídico tutelado “autoridade militar” no caso em que está em causa um militar da GNR haverá de ser enquadrado no âmbito do particular interesse da tutela dos interesses militares da defesa nacional, abrangendo esta no actual momento o interesse da segurança interna, devendo contudo resultar claramente da acusação e da sentença, que o cometimento dos crimes de abandono de posto e de insubordinação por desobediência por parte de militar a exercer funções na Guarda Nacional Republicana, e por causa dessas funções, violou um dos bens jurídicos protegidos pelo CJM, e que estão muito para além do que qualquer uma das missões típicas da GNR, a saber, os decorrentes do artigo 3.º da Lei n.º 63/2007 de 6 de Novembro.
3. A omissão na acusação e no acórdão condenatório de uma tal formulação típica subjectiva do crime estritamente militar imputado aos arguidos nos moldes necessários para se revelar preenchida a violação da norma não é susceptível de ser suprida por configurar inexistência de crime, sob pena de violação da estrutura acusatória e do artigo 18º nº 2 da Constituição portuguesa.
4. Da matéria dada como provada no acórdão impugnado fica por esclarecer em que medida o concreto comportamento dos arguidos afectou um dos bens jurídicos protegidos pelo CJM, sendo eles militares a exercer funções na GNR, pois nada nos autos nos diz a missão em concreto que, no caso do arguido BB se recusou a desempenhar, ou em que medida a sua conduta e a do arguido AA colocou em causa a prontidão da instituição para o desempenho das suas atribuições, nomeadamente no âmbito da defesa nacional, de molde a que se apure a sua relevância criminal em sede de justiça militar, e não meramente disciplinar, como sucede, em casos similares, com os agentes de outras forças de segurança.
5. Da matéria de facto que foi dada como provada pelo coletivo resulta que “a partir de 07 de junho de 2021, na sequência da aprovação da proposta n.º ...-UCC, de 01.06.21, deixou de existir a necessidade de permanência física nas LVI, nomeadamente a LVI ..., passando-se a prever a sua reativação sempre que existam condições meteorológicas e de mar adversas que exijam o permanente cuidado com as embarcações ou sempre que os meios de fecho das embarcações não permitam o seu encerramento, e a sua manutenção sempre que os locais de atracação não garantam condições mínimas de segurança, a avaliar pelos respetivos Comandantes e Patrões”.
6. Atenta a redacção dos artigos 66.º e 87.º do Código de Justiça Militar (CJM), que tipificam os crimes de “Abandono de posto” e “Insubordinação por desobediência”, a necessidade de permanência física nas LVI, nomeadamente a LVI ..., é um dos elementos da comissão dos crimes de “Abandono de posto” e “Insubordinação por desobediência”, ou seja, uma condição objetiva de punibilidade, deste crime.
7. Excluiu-se da tutela penal as condutas referentes a situações em que a obrigação de permanência não ocorra, assim disciplinando o regime punitivo em termos exclusivos e, por conseguinte, de forma excludente de outras previsões típicas que respeitem a condutas diversas, o que torna os factos imputados aos arguidos como não puníveis criminalmente.
8. Acresce, ainda, que no caso em apreço, da materialidade fáctica apurada e fixada não se apurou pela positiva que tivesse concretamente existido qualquer prejuízo para a segurança ou prontidão operacional.
9. Sendo o crime de abandono de posto um crime doloso, os factos indiciados não preenchem, nem objetiva nem subjetivamente esse tipo legal de crime, pois que, além do mais, as exigências de serviço determinaram a alteração do regime da guarnição de serviço à embarcação Lancha de Vigilância e Interceção.
10. No que se reporta ao crime de insubordinação, p. e p., pelo art. 87º, nº 1 al. g) do Código de Justiça Militar são válidas e aplicáveis relativamente àquele todas as considerações doutrinais e jurisprudenciais tecidas a propósito deste ilícito, previsto e punido pelo art. 348º do CP.
11. No caso dos autos, não existindo norma que preveja expressamente que o militar que não compareça ao serviço comete um crime de desobediência (ou melhor, insubordinação), o arguido BB apenas cometeria tal crime se expressamente advertido pelo graduado de serviço no sentido de que, caso não comparecesse ao serviço, incorreria no crime de insubordinação – o que não aconteceu.
12. Trata-se de uma situação de desobediência atípica ou inominada, que exige e pressupõe que a autoridade ou o funcionário (ou o superior hierárquico) fizeram a correspondente cominação (cfr. art. 348º, nº 1 al. b) do CP); não existindo tal cominação, falta a necessária voluntariedade para se poder afirmar o dolo.
13. O douto acórdão impugnado violou o disposto nos artigo 1º, n.º 2, artigo 66.º, n.º 1, al. e}, e o artigo 87.º, n.º 1, da alínea g), do Código de Justiça, art.ºs 18º, nº , 211º, 213º e 219º nº 1 da Constituição da RP, artigo 3.º da Lei n.º 63/2007 de 6 de Novembro e art. 348º do Código Penal.”

Admitido o recurso, o Ministério Público veio responder pugnando pelo seu não provimento, alegando que In casu, e tendo em conta que o serviço que fora designado aos recorrentes se mostra intimamente ligado às missões de defesa nacional ou de segurança interna, dúvidas não podem restar de que as condutas por estes assumidas e que constituem o objecto dos presentes autos não podem senão ser tipificadas como crimes de natureza estritamente militar e que o Acórdão colocado em crise não merece qualquer das críticas ou censuras que lhe são dirigidas pelos recorrentes, não se verificando a violação de qualquer norma legal, nomeadamente as que lhe foram por aqueles apontadas.

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso manifestando inteira adesão à argumentação da resposta do Ministério Público no tribunal recorrido.
No âmbito do artigo 417º, nº2, do CPP, nada veio a ser requerido.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto:
- Apreciar e decidir se, os comportamentos dados como assentes traduzem ou não condutas tipificadas como crimes de natureza militar; se os factos provados, preenchem objectiva, e subjectivamente, os tipos legais de crime em causa; se está verificada a condição objectiva de punibilidade.

II.1. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões tendo presente o teor da decisão recorrida e os factos que dela constam, e que se transcreve:
“II. Fundamentação:
A. Da audiência de julgamento resultaram PROVADOS OS seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
1. O Cabo (Guarda-Principal à altura dos factos) AA e o Guarda- Principal BB são militares do SDCC.
2. No dia 26 de dezembro de 2020, o arguido AA encontrava-se escalado para o serviço de quarto à LVI ..., atracada no cais ..., das 09H00 até às 21H00 desse mesmo dia.
3. Contudo, quando eram apenas 20H04 desse dia, o arguido AA, e sem qualquer autorização superior ou rendição antecipada por outro militar, abandonou o local de serviço e saiu do Novo Porto Comercial de ..., local onde se encontrava atracada a embarcação.
4. O arguido BB encontrava-se escalado para o serviço de quarto à embarcação LVI ..., atracada no cais ..., das 21H00 de dia 26 de dezembro de 2020 até às 09H00 de 27 de dezembro de 2020.
5. Contudo, o arguido BB não se apresentou para o referido serviço na data e hora superiormente determinada, tendo-o apenas feito depois das 08H40, hora a que entrou no Novo Porto Comercial de ....
6. Haviam sido nomeados para fazer serviço de patrulha na LVI ..., em 27 de dezembro de 2020, militares do Subdestacamento de Controlo Costeiro de Matosinhos, designadamente o Sargento-Ajudante CC e o Cabo DD, devido ao facto de no SDCC não haver efetivo
...

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