Acórdão nº 344/20.5IDPRT-B.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 18-01-2023

Data de Julgamento18 Janeiro 2023
Ano2023
Número Acordão344/20.5IDPRT-B.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
PROC. n.º344/20.5IDPRT-B.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
Por despacho de 02.12.2022, o Senhor Juiz de Instrução Criminal do Porto indeferiu a obtenção da faturação detalhada onde constem as chamadas efetuadas e recebidas (trace-back) requerida pelo Ministério Público, invocando o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19.04, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos art.ºs 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17.06.
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Inconformado, recorreu o Ministério Público.
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Conforme admitido pelo disposto no art.º 187.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público promoveu interceções telefónicas e a obtenção de dados de tráfego, trace -back e georreferenciação.
2. O Tribunal a quo considerou essencial à descoberta da verdade a realização de interceções telefónicas, mas negou a restante promoção por considerar ser inconstitucional a obtenção desses elementos. Fundou-se na jurisprudência resultante do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022.
3. O Tribuna! Constitucional não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade do disposto no art.º 189º/2, do Código de Processo Penal, mas sim sobre normas da Lei 32/2008.
4. Caso o MMº Juiz do Tribunal a quo entendesse que o disposto no art.º 189º/2, do Código de Processo Penal é inconstitucional em virtude da doutrina constante de tal Acórdão, teria que expressamente tê-lo declarado para que se iniciasse o mecanismo de fiscalização .difusa de constitucionalidade com recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, o que não, fez. Tão pouco elencou argumentos que permitam concluir que assim o entende.
5. Já depois de publicado o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, foi proferido o Acórdão do Supremo Tribunal de 06.09.2022, no Processo 618/16.0SMPRT, em sede de recurso extraordinário de revisão.
6. Aí se sumariaram as seguintes conclusões: "Os arts. 187.º a 189.º do Código de Processo Penal regulam o recurso aos dados relativos a conversações ou comunicações telefônicas em tempo real, enquanto o acesso aos dados conservados pelas operadoras por conversações ou comunicações telefónicas passadas é regulado pela Lei n°32/2008, de 17 Julho;
7. O n.º 1 do art. 187.º do Código de Processo penal delimita o objeto dessa regulação como "a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas o que representa comunicações a ocorrer, conversações ou comunicações telefónicas em tempo real.
8. Já se o que interessa processualmente são comunicações passadas, localizadas no tempo e no espaço, chama-se á colação a Lei n°32/2008, de 17 de julho.
9. São, pois, dois meios de prova diferentes: um as escutas telefónicas, outro a conservação e transmissão dos dados. O primeiro regulado nos arts 187.º a 190 do Código de Processo Penal. O segundo previsto nos artigos 4a, 6a e 9o da Lei 32/2008, agora declarados inconstitucionais nos termos do acórdão n° 268 do Tribunal Constitucional.
10. Mais, a doutrina fala mesmo na trilogia das fontes da prova digital, a saber: Código de Processo Penal, artigos 187.º a 190.º, Lei 32/2008, de 17.07, a denominada lei dos metadados, e a Lei 109/2009, de 15.09, Lei do Cibercrime, "três diplomas legais para regular aspetos parcelares da mesma realidade concreta”
11. O acórdão do Tribunal Constitucional não buliu em mínima medida sequer com o regime processual penal das interceções telefónicas."
Termos em que se pugna que o Despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que ordene às operadoras de telecomunicações que fornecem os serviços de comunicações aos postos alvo de interceção, que entreguem nos autos os dados de faturação detalhada, tracè-back e georreferenciação.
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O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
Objeto do recurso
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto, considerando tais conclusões, a questão suscitada e que importa decidir resume-se a saber se a obtenção da faturação detalhada onde constem as chamadas efetuadas e recebidas (trace-back) pretendida pelo Ministério Público é ou não admissível.
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Decisão recorrida [transcrição]:
(…)
No que respeita à facturação detalhada onde constem as chamadas efectuadas e recebidas (trace-back), considerando que, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, al.s c) e f) da Lei 32/2008, de 17.JUL, essas informações dizem respeito a dados de tráfego e que esses normativo (bem como os seus art.ºs 6.º e 9.º) foram declarados inconstitucionais, pelo ac. do Tr. Constitucional n.º 268/2022, de 19.ABR, com força obrigatória geral, não pode dar-se acolhimento a tal pretensão do M. Público.
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Decidindo a questão objeto do recurso
Como vimos, o recorrente insurge-se contra o despacho de 02.12.2022, que recaiu sobre a promoção de 30.11.2022 e indeferiu a obtenção da faturação detalhada onde constem as chamadas efetuadas e recebidas (trace-back) pretendida pela investigação.
Para o efeito, o Tribunal a quo invocou o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19.04, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas dos art.ºs 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17.06, por violação, quanto aos dois primeiros, do disposto nos n.ºs 1 e 4 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º 26.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º 18.º, todos da Constituição, e quanto ao último, por violação do disposto no n.º 1 do art.º 35.º e do n.º 1 do art.º 20.º, em conjugação com o n.º 2 do art.º 18.º, também da Constituição.
Sustenta, em síntese, o recorrente que o referido Acórdão apenas se pronunciou sobre a inconstitucionalidade de normas constantes da Lei 32/2008, de 17.07, e não de quaisquer outras. Diz que se mantém em vigor o disposto no art.º 189.º, n.º 2, do C.Penal, dado não ter sido colocada em causa pelo Tribunal Constitucional e que o decidido naquele aresto não se reporta as medidas ordenadas, ou cabíveis, numa investigação criminal em curso, para a qual o legislador consente a emissão de ordem judicial para a interceção em tempo real de comunicações, legitimando, também, a obtenção de dados de contexto que permitam que tal medida seja minimente eficaz, enquanto durar. Sustenta também que a decisão recorrida padece de falta de concordância prática de valores, ao abrigo do princípio da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais, consagrada no art.º 18.º do texto fundamental, argumentando que, caso o Tribunal Constitucional perspetive como violadora de direitos fundamentais a obtenção de dados de tráfego e de georreferenciação, habilitadas no Código de Processo Penal, gerar-se-ia um desequilíbrio difícil de solucionar ao abrigo da lógica de compressão proporcional de direitos fundamentais. Argumenta ainda que o disposto na Lei 32/2008 e o art.º 189.º do Código de Processo Penal são assimétricos e não se confundem.
A questão suscitada é à idêntica à que tratámos no Acórdão de 07.09.2022[1], não havendo razão para decidir de forma diferente[2].
A Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas coletivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Diretiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações eletrónicas.
Como escreve Maribel González Pascual[3], a Diretiva n.º 2006/24/CE, entretanto declarada inválida pelo Acórdão de 8 de abril de 2014 do TJUE[4], foi talvez a norma mais polémica da UE. Aprovada após os atentados de Madrid (2004) e de Londres (2005), previa a conservação de determinados dados pessoais de modo a poderem ser disponibilizados para efeitos de investigação, deteção e repressão de crimes graves tal como definidos no direito nacional de cada Estado-Membro [...]como o terrorismo e o crime organizado (considerando 21). Com esse objetivo, a Diretiva estabelecia a obrigação de os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas conservarem, durante um mínimo de seis meses e um máximo de dois anos, dados relativos às comunicações (…) A controvérsia gerada pela Diretiva da conservação de dados refletiu-se na sua transposição. Alguns Estados Membros resistiram em adotar, no prazo previsto, as disposições propostas para dar cumprimento à Diretiva (o que levou a Comissão a instaurar ações de incumprimento contra a Grécia[5], Áustria[6], Irlanda[7], Suécia[8], Países Baixos[9]), enquanto noutros Estados Membros a questão chegou aos tribunais nacionais. Em termos gerais, os aspetos mais controvertidos consistiam em saber se a conservação indiscriminada de dados relativos às comunicações não constituía uma violação, pelo menos, do direito à vida privada e à proteção de dados pessoais, e, não constituindo, que requisitos devia cumprir a norma para que a dita conservação não vulnerasse os referidos direitos. Apesar de os casos serem similares, a resposta dos tribunais nacionais foi diferente. O Tribunal
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