Acórdão nº 268/22 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Abril de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução19 de Abril de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 268/2022

Processo n.º 828/2019

Plenário

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. A Provedora de Justiça requereu, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, por violarem o princípio da proporcionalidade na restrição dos direitos à reserva da intimidade da vida privada e familiar (n.º 1 do artigo 26.º da Constituição), ao sigilo das comunicações (n.º 1 do artigo 34.º da Constituição) e a uma tutela jurisdicional efetiva (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição).

2. O pedido de declaração de inconstitucionalidade encontra-se fundamentado nos seguintes termos:

«A. A relação entre a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, e o direito da União Europeia. 1.º. Nos termos do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, os fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações têm o dever de conservar, pelo período de um ano, os dados de tráfego e de localização de todas as comunicações electrónicas, os quais vêm especificados no artigo 4.º do mesmo diploma.

2.º. Trata-se dos dados relativos às subscrições e a todas as comunicações electrónicas necessários para encontrar e identificar a fonte e o destino de uma comunicação (artigo 4.º, n.º 1, alíneas a) e b)), para determinar a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação (artigo 4.º, n.º 1, alíneas c) e d)), para identificar o equipamento de telecomunicações dos utilizadores (artigo 4.º, n.º 1, alínea e)) e para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel (artigo 4.º, n.º 1, alínea f)).

3.º. A obrigação de conservação dos dados abrange os dados gerados ou tratados no âmbito de um serviço telefónico na rede fixa, de um serviço telefónico na rede móvel, de um serviço de acesso à Internet, de um serviço de correio electrónico através da Internet bem como de um serviço de comunicações telefónicas através da Internet.

4.º. Esta obrigação também inclui os dados relativos às chamadas telefónicas falhadas (artigo 5.º, n.º 1).

5.º. Fora da obrigação de conservação dos dados estão os dados relativos ao conteúdo das comunicações, porquanto, nos termos do disposto no n.° 2 do artigo 1.º, a conservação de tais dados é expressamente proibida.

6.º. No que diz respeito às comunicações telefónicas na rede fixa devem ser conservados os dados relativos ao número de telefone de origem e aos números marcados, os dados relativos ao nome e endereço dos assinantes ou dos utilizadores registados (artigo 4.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea a)), os dados relativos à data e hora do início e do fim da comunicação (artigo 4.º, n.º 4, alínea a)), os dados relativos ao serviço telefónico utilizado (artigo 4.º, n.º 5, alínea a)) e os números de telefone de origem e de destino (artigo 4.º, n.º 6, alínea a)). Relativamente às comunicações telefónicas na rede móvel, aplicam-se obrigações suplementares, tais como a conservação da Identidade Internacional de Assinante Móvel (IMSI) e da Identidade Internacional de Equipamento Móvel (IMEI) de quem telefona e do destinatário (artigo 4.º, n.º 6, alínea b)), bem como dos dados de localização do início e do fim da comunicação (artigo 4.º, n.º 7).

7.º. No que diz respeito aos serviços de acesso à Internet, aos serviços de correio electrónico através da Internet e às comunicações telefónicas através da Internet devem ser conservados os códigos de identificação atribuídos ao utilizador, o código de identificação do utilizador e o número de telefone atribuídos a qualquer comunicação que entre na rede telefónica pública e o nome e endereço do assinante ou do utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP, o código de identificação de utilizador ou o número de telefone estavam atribuídos no momento da comunicação (artigo 4.º, n.º 2, alínea b), bem como as datas e horas do início (log in) e do fim (log off) da ligação ao serviço de acesso à Internet ou da ligação, juntamente com o endereço do protocolo IP, dinâmico ou estático, atribuído pelo fornecedor do serviço de acesso à Internet a uma comunicação, bem como o código de identificação de utilizador do subscritor ou do utilizador registado (artigo 4.º, n.º 4, alínea b), subalínea i) ou da ligação ao serviço de correio electrónico através da Internet (artigo 4.º, n.º 4, alínea b), subalínea ii), o serviço de Internet utilizado (artigo 4.º, n.º 5, alínea b) e ainda os dados relativos ao número de telefone que solicita o acesso por linha, a linha de assinante digital ou qualquer outro identificador terminal do autor da comunicação (artigo 4.º, n.º 6, alínea c)).

8.º. Em causa estão, portanto, dados que revelam a todo o momento aspectos da vida privada e familiar dos cidadãos, permitindo rastrear a localização do indivíduo ao longo do dia, todos os dias (desde que transporte o telemóvel ou outro dispositivo electrónico de acesso à Internet), e identificar com quem contacta (chamada - inclusive as tentadas e não concretizadas - por telefone ou telemóvel, envio ou recepção de SMS, MMS, de correio electrónico, ou de comunicações telefónicas através da Internet), bem como a duração e a regularidade dessas comunicações.

9.º. A Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

10.º. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) declarou a invalidade da referida Directiva no acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland Ltd e outros, C-293/12 e C-594/12.

11.º. A declaração de invalidade teve por fundamento a violação do princípio da proporcionalidade pela restrição que a Directiva opera dos direitos ao respeito pela vida privada e familiar e à protecção de dados pessoais, consagrados nos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta).

12.º. Com efeito, apesar de o TJUE ter reconhecido que as medidas previstas na Directiva - relativas à imposição do dever de conservação de dados de tráfego e de localização gerados no contexto de comunicações electrónicas e ao dever da sua transmissão às autoridades competentes para efeitos de investigação, detecção e repressão de crimes graves - eram, em si mesmas, medidas legítimas e adequadas ao fim visado, nem por isso deixou de concluir que as mesmas violavam o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de [do subprincípio da] necessidade.

13.º. Tratando-se de um acto de transposição de uma directiva, a Lei n. ° 32/2008, de 17 de julho, consubstancia, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 51.º da Carta, um acto de aplicação do direito da União Europeia.

14.º. Tal significa que, embora tratando-se formalmente de legislação nacional e não de um acto adoptado pelas instituições da União Europeia, a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, está directamente vinculada pela Carta.

15.º. Nesta medida, os fundamentos invocados pelo TJUE para sustentar a declaração de invalidade do regime europeu que a Lei n.º 32/2008 pretendeu transpor não poderão deixar de ser tidos em conta, no momento em que se afira da conformidade ou não conformidade em relação à Carta das normas contidas neste regime nacional.

16.º. Além disso, resulta do acórdão do TJUE de 21 de dezembro de 2016, Tele2 Sverige e Watson, C-203/15 e C-698/15, que qualquer legislação nacional que preveja a conservação de dados implica necessariamente a existência de disposições relativas ao acesso, por parte das autoridades nacionais competentes, aos dados que sejam conservados pelos prestadores de serviços de comunicações eletrónicas. Assim, e anda que a Directiva 2006/24 tenha sido declarada inválida pelo TJUE, nem por isso a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, poderá deixar de ser incluída no âmbito de aplicação da Diretiva 2002/58/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de julho de 2002, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas (cfr. acórdão Tele2, n.ºs 79-81).

17.º. Pelo que não restam dúvidas de que a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, se enquadra no âmbito de aplicação do direito da União, encontrando-se, portanto, a definição pela República Portuguesa do regime legal de conservação de dados de comunicações electrónicas directamente vinculada pela Carta (artigo 51.º, n.º 1 da Carta).

18.º. É justamente em virtude da vinculação da legislação nacional à Carta que, no seguimento das decisões do TJUE, a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) emitiu a Deliberação n.º 641/2017, de 9 de Maio, onde expôs a sua perspectiva sobre a Lei n.º 32/2008, considerando que a mesma contém normas que prevêem a restrição ou ingerência nos direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e pelas comunicações e à protecção dos dados pessoais com grande amplitude e intensidade, em violação do princípio da proporcionalidade e, portanto, em violação do n.º 1 do artigo 52.º da Carta, bem como uma restrição desproporcionada dos direitos à reserva da intimidade da vida privada, à inviolabilidade das comunicações e à protecção de dados pessoais, em violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.

19.º. Face a esse seu entendimento, a CNPD, através da Deliberação n.º 1008/2017, de 18 de julho, decidiu desaplicar a Lei n.º 32/2008 nas situações que lhe sejam submetidas para apreciação.

20.º. Tendo em conta todos estes dados, poder-se-ia concluir estar-se perante legislação nacional «inteiramente determinada» -...

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