Acórdão nº 3256/20.9T8STS-B.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2023-04-18

Ano2023
Número Acordão3256/20.9T8STS-B.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Processo: 3256/20.9T8STS-B.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 7

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. Por apenso aos autos em que foi declarada a insolvência de A..., Lda., veio o Administrador da Insolvência (AI) apresentar a lista dos credores por si reconhecidos e a lista dos não reconhecidos, nos termos do disposto no artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Decididas as reclamações apresentadas, foi proferida sentença de verificação e graduação dos créditos reconhecidos, na qual se decidiu, para além do mais, o seguinte:
«Pelo exposto, graduo os créditos acima reconhecidos da seguinte forma:
A) Relativamente à verba n.º 58 e 59: valores mobiliários e ações da B... apreendidas:
1) Em primeiro lugar e a par, os créditos privilegiados do Instituto da Segurança Social, no montante de € 6.182.04, e os créditos privilegiados do IEFP, nos montantes de € 30152.70 e € 4049.04;
2) em segundo lugar, será pago o crédito de B..., SA, que beneficia de penhor sobre tais ações.
3) Em terceiro lugar, deverão pagar-se os créditos privilegiados dos trabalhadores indicados na Lista do art. 129º CIRE, com a correção dos montantes dos créditos das trabalhadoras AA, BB (conforme acima exposto) e os créditos de que é titular o FGS (cfr. apensos de habilitação de cessionário)
4) Em quarto lugar, os créditos privilegiados da Autoridade Tributária, provenientes de IRC, IRS e IVA;
5) Em quinto lugar, o crédito privilegiado do credor requerente da insolvência C... Company, nos termos do art. 98.º do CIRE, no montante de € 54.780.09;
6) Do remanescente, se o houver, dar-se á pagamento aos créditos comuns reconhecidos, a solver por rateio, na proporção dos seus créditos.
7) Por fim, e depois de integralmente pagos os créditos privilegiados, garantidos e comuns, serão pagos os créditos subordinados (referentes a juros vencidos após a declaração de insolvência), em conformidade com o disposto no artigo 177º do CIRE.
(…)»
*
6. Inconformada, B..., S.A. apelou desta sentença, formulando as seguintes conclusões:
«i) A douta sentença recorrida deve ser revogada, porque nela se fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do Direito.
ii) O presente recurso é interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que, face à conjugação dos nº 1 e 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro com o artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigos 666º e 747º, nº 1, do Código Civil, entendeu que o crédito garantido reclamado pela Segurança Social deveria prevalecer sobre o crédito garantido por penhor e sobre os créditos laborais.
iii) Por aplicação do artigo 666º e 749º do Código Civil, o crédito garantido por penhor prevalece sobre i) o crédito com privilégio mobiliário geral dos trabalhadores (artigo 333º do Código do Trabalho) e ii) os créditos do Estado por impostos (mencionados na referida alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil).
iv) Segundo o nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, o privilégio mobiliário geral de que goza o crédito da Segurança Social por contribuições, quotizações e juros de mora “prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior”.
v) Pela mera aplicação da letra da lei, no confronto – exclusivo – entre um crédito da Segurança Social com privilégio mobiliário geral e um crédito garantido por penhor terá de prevalecer o primeiro.
vi) A solução poderá não ser a mesma quando, na graduação, estejam em concurso outros créditos com privilégio mobiliário geral (in casu, os créditos privilegiados dos trabalhadores e os créditos do Estado por impostos), sob pena de graves e arbitrárias distorções e incoerências jurídicas.
vii) A graduação levada a cabo pelo Tribunal a quo não resolve adequadamente o concurso de credores, especificamente o concurso entre os créditos que gozam de privilégios mobiliários gerais e o crédito garantido por penhor.
viii) Individualmente considerados, o crédito privilegiado dos trabalhadores prevalece sobre o crédito privilegiado da Segurança Social (cfr. artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009) mas cede perante o crédito garantido por penhor (artigo 666º e 749º, nº1, do CC); o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece sobre o crédito garantido por penhor (artigo 204º, nº 2 da Lei nº 110/2009); o crédito garantido por penhor prevalece sobre os créditos dos trabalhadores e sobre os créditos do Estado por impostos (artigo 666º e 749º, nº 1 do Código Civil).
ix) Na categoria dos privilégios mobiliários gerais, o legislador conferiu uma força especial aos privilégios laborais, uma vez que estes devem ser graduados antes dos restantes créditos privilegiados, nomeadamente os do Estado e os da Segurança Social (artigo 333º, nº 2, a), do Código do Trabalho).
x) Todavia, no confronto entre os privilégios mobiliários gerais e o penhor (garantia real) apenas o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece, por aplicação da norma absolutamente excecional do nº 2 do artigo 204º, da Lei nº 110/2009, mas já não os privilégios laborais.
xi) Ao conjugar os normativos aplicáveis (nº 1 e 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro com o artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigos 666º, 747º, nº 1, do Código Civil) de forma a graduar em primeiro lugar o crédito da Segurança Social, em segundo o crédito pignoratício da B..., em terceiro o crédito dos trabalhadores, o Tribunal a quo não interpretou adequadamente a Lei.
xii) À luz dos critérios estipulados no artigo 9º do Código Civil, a unidade do sistema jurídico e a realização da justiça do caso reclamam uma interpretação corretiva-restritiva da norma do nº 2 do artigo 204º da Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro, segundo a qual quando concorram em exclusivo, este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
xiii) Quando concorrem outros créditos com privilégio mobiliário geral (nomeadamente os créditos dos trabalhadores) a prioridade conferida pelo artigo 204º, nº 2, da Lei nº 110/2009, de 16 de setembro não opera, uma vez que há uma contradição insanável entre todos os dispositivos aplicáveis.
xiv) O princípio da prevalência do penhor sobre os privilégios mobiliários gerais deve, assim, enformar a decisão a proferir pelo Tribunal, por ser um princípio geral nesta matéria, respeitando-se, ainda, a coerência do sistema jurídico.
xv) Esta é a única solução que: i) Respeita a ordem geral de graduação dos privilégios mobiliários gerais, estabelecida no artigo 747º, nº 1, a) Código Civil, artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009 e artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho; ii) Cumpre os princípios gerais do direito, mormente a natureza real e a característica da sequela do penhor, nos termos dos artigos 666º do Código Civil; iii) Privilegia o substantivo em relação ao processual, na medida em que respeita o princípio substantivo, plasmado no artigo 749º do Código Civil, de que “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”, como é o caso do penhor.
xvi) A decisão a quo viola os artigos , 666º, 747º, nº 1 e 749º, nº 1 do Código Civil, o artigo 204º, nº 1 e 2 da Lei nº 110/2009, de 16 de setembro (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social), o artigo 333º, nº 1 e 2, do Código do Trabalho.
Terminou pugnando pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que gradue, pelo produto da venda das ações, em primeiro lugar, o crédito reclamado pela B..., na parte garantida por penhor.
Não foi apresentada qualquer resposta a alegação do recurso.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se, com referência às acções descrias nas verbas n.º 58 e 59 do auto de apreensão, o crédito pignoratício da recorrente deve ser graduado antes ou depois dos créditos do Instituto da Segurança Social (ISS) e do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) que beneficiam de privilégio mobiliário geral.
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III. Fundamentação
1. Factualidade relevante
A decisão recorrida descreve assim a factualidade relevante:
- Foram reconhecidos os créditos acima referidos, constando a natureza dos créditos da Lista homologada;
- Foram apreendidos para a Massa Insolvente os seguintes bens:
a) bens moveis identificados no auto de apreensão de bens;
b) prédio urbano n.º ... CRP Vila do Conde, no qual a insolvente exercia a sua atividade;
c) valores mobiliários e ativos financeiros descritos no auto de apreensão de bens junto a 12.03.2021:


2. Direito
Nos termos do disposto no artigo 604.º, n.º 1, do Código Civil (CC), não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
Esta norma consagra o princípio da par conditio creditorum, que a Ana Prata (Dicionário Jurídico, Coimbra, Almedina, 2006, 4.ª ed., p. 848) define como o «princípio segundo o qual todos os credores – que não gozem de nenhuma causa de preferência relativamente aos outros credores – se encontram em igualdade de situação,
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