Acórdão nº 2629/22.7T8VFR.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2023-01-18

Ano2023
Número Acordão2629/22.7T8VFR.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. nº 2629/22.7T8VFR.P1


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


I. RELATÓRIO
Nos presentes autos o arguido AA deduziu impugnação judicial da decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) que determinou a cassação de licença de condução de que é titular.
Realizada audiência de julgamento foi proferida decisão que julgou improcedente a impugnação e manteve a decisão da autoridade administrativa.
Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso.
Termina com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Tendo o arguido cumprido já as penas acessórias a que foi judicialmente condenado de inibição de conduzir, pelo período total de 9 meses, está a ser-lhe aplicada, com base na mesma factualidade, uma dupla penalização, ou seja, a cassação agora comunicada ao arguido, e a proibição de conduzir que já havia cumprido, e ainda a proibição de conduzir, agora, por um período de mais dois anos, o que é legalmente inadmissível;
2. A aplicação da medida de segurança de cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, também prevista no artigo 101º. do Código Penal não pode ser aplicada cumulativamente com a sanção acessória de inibição de conduzir a que o arguido foi já sujeito, conforme resulta expressamente da lei, sendo que tal proibição resulta, de forma expressa, do nº. 7 do art. 69.º do Código Penal, e estamos perante um concurso aparente ou concurso de normas;
3. Neste caso, o que acontece é que a norma prevista no art.º 69 do C.P. vê a sua aplicação condicionada pela não aplicabilidade de outra norma (101.º do CP), só se aplicando a norma subsidiária quando a outra não se aplique;
4. Se já foi aplicada a norma do artigo 69º. do Código Penal, não pode agora o arguido se objeto de cassação do título de condução e interdição da concessão do título de condução, que na prática tem o mesmo conteúdo da pena prevista no artigo 101º. do C.P., sendo que ambas impõem o mesmo comportamento ao arguido – a proibição de conduzir -, afetando os seus direitos de circulação rodoviária, pelo que ambas têm o mesmo conteúdo pragmático/funcional.
5. No caso em apreço o arguido já cumpriu 11 meses de inibição de conduzir e agora, na prática, pretende-se aplicar mais 24 meses da mesma pena (já que não poderá obter novo título por esse período), retirando-lhe o título de condução, pelo que terá de se concluir que a decisão de cassação do título de condução e o impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos, e cumulativamente a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor que já lhe foi aplicada, prevista no art. 69º do mesmo diploma, viola a norma prevista no nº. 7 do referido artigo 69.º do Código Penal.
6. Caso assim não se entenda – o que apenas se admite por hipótese de raciocínio - sempre se mostram verificados os pressupostos para que seja decretada uma redução do período para obter novo título de condução, ou então, um desconto do período já cumprido anteriormente pelo Arguido (11 meses).
7. Tendo como pressuposto que às contra-ordenações se aplicam subsidiariamente as normas do Código Penal, na verdade, na prática a aplicação agora ao arguido da decisão de cassação da carta e do impedimento de obter novo título pelo período de dois anos configura uma nova aplicação da pena acessória de proibição de conduzir pelo período de dois anos (a somar à pena que já cumpriu de 11 meses), exatamente pelos mesmos factos, o que configura claramente uma violação do princípio ne bis inidem;
8. A interpretação do artigo 148º. nº. 2 do C.E. (que estabelece que “A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.), aplicado juntamente com a alínea c) do nº. 4 do mesmo artigo (que estabelece que “A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.”), juntamente com o nº. 10 do mesmo artigo (que estabelece que “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”), e ainda com o nº. 11 do mesmo artigo (que estabelece que “A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação”.), no sentido de que pode ocorrer aquela “cassação automática do título de condução” e inibição de poder conduzir durante dois anos, quando o arguido tenha cometido dois crimes rodoviários (tendo sido já sancionado e cumprido por cada um dos crimes, a inibição de conduzir em que foi condenado, e sem que àquele período de dois anos seja descontado pelo menos o período já cumprido de inibição de conduzir ínsito nas condenações penais), é inconstitucional por violação do nº. 5 do artigo 29º. da C.R.P. (que estabelece que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”) e por violação do nº. 4 do artigo 30º. da C.R.P. (que estabelece que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos) e do artigo 18º. nº. 2 da C.R.P. que estabelece que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
9. Na prática o que se verifica é que as penas aplicadas ao arguido nos processos criminais - em que foi condenado em multas e na sanção acessória de inibição de conduzir, que cumpriu já integralmente -vieram a envolver como efeito necessário a perda do seu direito civil de conduzir veículos automóveis pelo menos por dois anos e a perda do seu título de condução, o que não é admissível.
10. Um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo do crime aqui em causa, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do CP, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no CE se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta;
11. O artº 134º nº 1 do C.E., sob a epígrafe “concurso de infrações”, estatui que, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação, e tal como já foi referido em vários acórdãos da Relação de Coimbra, nomeadamente, no rec. 232/13.1GBTCS.C1 de 8/01/2017 a disposição do n.º 1 do artigo 134.º do Código da Estrada não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção.
12. Há situações em que o mesmo facto constitui simultaneamente crime e contraordenação, por violação de regras de condução e normas que definem o respetivo quadro legal mas, perante um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo de crime, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta (ac. cit).
13. É exatamente o que se verifica no caso em apreço, pois que o arguido já cumpriu a pena da sanção acessória de proibição de conduzir prevista na Lei Penal e a ser-lhe agora aplicada a sanção de não poder obter novo título de condução pelo período de dois anos, na prática estamos a falar da sanção acessória de inibição de conduzir por esse período, o que constitui violação daquele princípio ne bis in idem.
14. A nossa Constituição proíbe determinantemente no art.º 30.º, n.º4 que o cidadão perca direitos, seja qual for a sua natureza, como efeito necessário de uma pena. E o efeito necessário da pena é a perda definitiva e automática do título de condução e o impedimento de conduzir veículos durante dois anos, levando o arguido a perder o seu emprego, como se explicará.
15. A proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de 2 anos, o que igualmente contradiz um dos principais princípios do direito, assente no facto de a pena dever ser graduada em função da culpa do infrator, e o que acontece aqui é pura e simplesmente aplicar-se, sem exceção, a mesma pena para todos, sem qualquer graduação, o que não poderá ser admissível e fere os mais elementares princípios de Justiça e de Direito.
16. A inibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º. nº. 1 do Código Penal e constante da norma do artigo 148º. nº. 11 do C.E., bem como a cassação do título de condução, assume a natureza de uma verdadeira pena e está associada à prática de um crime. e não obstante acessória, está, nessa qualidade, sujeita ao regime geral aplicável a qualquer pena, ou seja, pode ser suspensa na sua execução, ser substituída por pena alternativa ou ser especialmente atenuada ou agravada, como decorre do estabelecido no artigo 73°, nº. 2 do Código Penal,
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