Acórdão nº 246/22.0PGSXL-A.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2023-10-31

Ano2023
Número Acordão246/22.0PGSXL-A.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1–Relatório


Nos autos de inquérito nº 246/22.0PGSXL do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Instrução Criminal do Seixal, por despacho datado de 30/06/2023, foi indeferida a tomada de declarações para memória futura de ……, requerida pelo Ministério Público.

Inconformado com aquela decisão, veio o Ministério Público interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1.–No presente inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrarem prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.° 1, alínea b) e n.° 2, alínea a) do Código Penal, em que é vítima …… e denunciado/suspeito …… .
2.–A 27 de junho de 2023, o Ministério Público, como titular da ação penal e a quem cabe a direção do inquérito, por razões de discricionariedade tática na investigação e de proteção da vítima e da testemunha especialmente vulnerável, em momento anterior à constituição como arguido de ….., requereu ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal a tomada de declarações para memória futura da vítima …… e da menor de 15 anos de idade ……, filha da vítima e do denunciado/suspeito……, visando que as mesmas pudessem ter valor probatório em julgamento.
3.–Por despacho proferido a 30.06.2023, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal indeferiu a requerida tomada de declarações para memória futura por entender que sopesando os interesses da vitima, os interesses da investigação, os interesses do suspeito, ainda não constituído arguido, os princípios da mediação, a excecionalidade do instituto e a situação narrada nos autos não se mostram reunidas as circunstancias de excecionalidade para a sua realização, não decorrendo dos autos nenhuma das circunstancias factuais que as poderiam determinar.
4.–De facto, …… é vítima do crime de violência doméstica, pelo que, ao abrigo do disposto nos artigos 67.º-A, n.º n.º1, alíneas a) e i) e n.º3, do Código de Processo Penal e 21.º, n.º1, alínea d), do Estatuto da Vítima a prestação de declarações para memória futura de futura é um direito seu, ao que acresce que as declarações para memória futura constituem meio de prova e ao mesmo tempo meio de proteção da própria vitima.
5.–No caso em apreço, resulta dos autos que a vítima …… e o denunciado/suspeito …… viveram como se marido e mulher se tratassem durante 16 anos, tendo a relação terminado em junho de 2019, que durante o relacionamento o denunciado/suspeito agrediu fisicamente a vítima ……, através de empurrões, arremessando-lhe objetos contra o seu corpo, desferindo-lhe chapadas, obrigando-a a dormir no chão da residência e, bem assim, que as ofensas verbais foram uma constante ao longo de todo o relacionamento.
6.–Mais resulta dos autos, que o denunciado/suspeito …… não aceitou o fim do relacionamento e continuou a maltratar psicologicamente a vítima …… nomeadamente através de telefonemas e de mensagens escritas enviadas à vítima …… e à menor ……, filha de ambos, o que fez quando a vítima …… deixou de lhe dar dinheiro, que a vítima …… receia o comportamento do denunciado/suspeito quando este souber que apresentou queixa, que a mesma tentou suicidar-se na sequência dos maus tratos ao longo do relacionamento e que a filha de ambos sofre de ansiedade, sendo acompanhada psicologicamente.
7.–O legislador ao estabelecer o regime especial previsto no artigo 33.º, da Lei n.º112/2009, de 16 de setembro, atentou que a violência doméstica é uma forma de criminalidade particularmente suscetível de causar graves e duradouras consequências para as suas vítimas, sendo a tomada de declarações para memória futura um meio de medidas de proteção destas vítimas no âmbito do processo penal.
8.–Assim, entendemos que de modo a evitar a exposição pública dos factos pela vítima …… e o contacto com o sistema judicial e consequentemente acautelar a sua vitimização secundária, que sofra pressões desnecessárias e a genuinidade do seu depoimento a tomada de declarações para memória futura revela-se essencial à realização da justiça.
9.–Por outro lado, relativamente à tomada de declarações para memória futura da menor …… e, filha da vítima …… e do denunciado/suspeito ……, há que ter em atenção que, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 67.°-A, n.º1 e 271.º, ambos do Código de Processo Penal, 26.º e 28.º, ambos da Lei n.º93/99, de 14 de julho e 24.º, n.°1, da Lei n.º130/2015, de 4 de setembro, a mesma assume a qualidade de testemunha especialmente vulnerável e, bem assim, que a mesma vem sendo acompanhada psicologicamente.
10.–Pelo que, decorrendo da conjugação dos supra aludidos preceitos legais que, em processo de violência doméstica a tomada de declarações para memória futura de testemunha/vítima especialmente vulnerável deverá ser quase sempre o meio processual empregue por defeito, indeferir a tomada de declarações para memória futura da menor …… coloca em causa a sua saúde psíquica, pois o contexto solene e constrangedor da prestação de depoimento em julgamento revela-se inadequado a personalidades ainda em formação, devendo o mesmo ser absolutamente excecional.
11.–Referiu ainda o Mmo. Juiz de Instrução que o titular do inquérito não justificou a necessidade de realização da diligência sem que o suspeito tenha sido constituído como arguido nem da necessidade de produção antecipada da prova nesta fase do processo.
12.–Ora, atenta a estrutura acusatória do processo penal no sistema jurídico português, não cabe ao Juiz de Instrução decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias a realizar em sede de inquérito, incluindo-se, o momento em que o denunciado/suspeito deverá ser constituído arguido, cabendo este juízo apenas ao Ministério Público que detém a titularidade, direção e realização do inquérito, nos termos do disposto nos artigos 53º, nº2, alínea b) e 263.º, n.º1, ambos do Código de Processo Penal.
13.–Na verdade, inexiste qualquer base legal para que, em primeiro lugar, se constitua alguém como arguido, para posteriormente, serem requeridas e tomadas as declarações para memória futura das vitimas.
14.–É evidente que, a ausência do arguido constituído dificultará o exercício da defesa. Mas isso não é diferente do que acontece naquelas situações em que o defensor é nomeado para representar um arguido ausente que não conhece e que nunca prestou declarações no processo, ou um arguido não presente no momento da produção da prova (nas situações dos artigos 325.º, n.º 5, 332.º, n.ºs 5 e 6 e 334.º, n.º 4 do Código de Processo Penal).
15.–Ademais, não obstante já tenham decorrido, como bem refere o Mmo. Juiz de Instrução, cerca de 7 meses desde o início do inquérito, não podemos olvidar que em 03.05.2023 foi pelo OPC junto um aditamento, no qual se relata, além do mais, a deslocação do denunciado/suspeito à residência da vítima, no âmbito da qual terá gritado e proferido expressões injuriosas e intimidatórias contra o pai da mesma, que o mesmo vem enviando mensagens escritas à menor …… referindo-se à própria e à vitima, ao que acresce o receio que a vítima referiu sentir do denunciado/suspeito.
16.–Assim, de modo a assegurar a proteção da vitima …… e da menor ……, não olvidando que a vítima …… referiu ter tentado o suicídio na sequência dos maus tratos que sofreu por parte do denunciado/suspeito e que a menor …… sofrerá de ansiedade sendo acompanhada psicologicamente, bem como evitar que as mesmas sofram pressões desnecessárias e acautelar a genuinidade dos seus depoimentos, deverão tais diligências ser realizadas antes que o denunciado/suspeito tenha sido constituído como arguido, afigurando-se-nos que no caso em apreço a prestação de declarações para memória futura é essencial para a realização da justiça.
17.–O indeferimento da tomada de declarações para memória futura impede que a vítima e a testemunha menor de idade exerçam o seu direito a prestar antecipadamente declarações e de evitar a sua revitimização e, tratando-se de factos, em si mesmos, traumáticos, importa necessariamente minimizar o trauma associado.
18.–Não obstante resultar do despacho recorrido que a tomada de declarações para memória futura se trata de um mecanismo excecional de produção de prova, não tem sido este o entendimento sufragado pelos nossos Tribunais quando se trate de tomada de declarações para memória futura a vítimas/testemunhas especialmente vulneráveis, entendimento que também acolhemos.
19.–Destarte, encontram-se reunidos todos os pressupostos de facto e de direito para a audição de …… e de …… em declarações para memória futura.
20.–Em nosso entendimento, o Mmo. Juiz de Instrução ao indeferir a tomada de declarações para memória futura, nos termos e com os fundamentos em que o fez, violou o disposto nos artigos 48.º, 53.º, 64.º, n.º 1, alínea f), 67º-A, n.º1, alíneas a) i) e iii) e n.º3, 262.º, 263.º, 267.º, 268.º, 269.º, 271.° e 283.º, todos do Código de Processo Penal,16.º, n.º2, 20.º, 22.º e 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, 21.º, 24.º, 29.º, todos da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, 20.º, n.ºs 1 e 2 e 32.º, n.ºs 1, 3 e 5, ambos da Constituição da República Portuguesa, artigo 6.º, n.º 3, alínea c), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e artigos 47.º e 48.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
21.–Razão pela qual o despacho ora em crise, deve ser substituído por outro, no qual se designe data para a tomada de declarações para memória futura de …… e da menor …… e se determine a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito……
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso, nos seguintes termos:
“Parecer – artº416º, nº1 do Código de Processo Penal.
Recurso próprio e tempestivo, sendo correto o efeito e o regime de subida que lhe está atribuído.
No âmbito do Pº
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