Acórdão nº 179/04.2PBLSB-A.L1-5 de Tribunal da Relação de Lisboa, 2024-01-23

Ano2024
Número Acordão179/04.2PBLSB-A.L1-5
ÓrgãoTribunal da Relação de Lisboa
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No âmbito do processo supra identificado foi proferido o seguinte despacho:
«O arguido AA, nascido a ...-...-1985, encontra-se em cumprimento de uma pena de quatro anos e nove meses de prisão efectiva, à ordem dos presentes autos, após a realização de cúmulo jurídico de penas.
As penas englobadas no aludido cúmulo jurídico reportam-se a crimes de roubo, p. e p. pelo artigo 210º nº 1 e nº 2 do Código Penal, praticados entre ... e ....
A Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, que entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2023, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções, por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1º).
Nos termos do artigo 2º da aludida Lei, estão abrangidos pela mesma, as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00.00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
No caso dos autos, o arguido tinha menos de trinta anos na data da prática dos factos, estando por isso abrangido, em termos de idade, por esta Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Contudo, o artigo 7º nº 1 alínea b) i), excluiu a aplicação do perdão ao crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 210º nº 2 do Código Penal.
Por outro lado, e tendo em conta as vítimas, o legislador optou também por excluir a aplicação do perdão a crimes cometidos contra vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67º-A do Código de Processo Penal (cfr. artigo 7º nº 1 alínea g) da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto).
O artigo 67º-A nº 3 do Código de Processo Penal estabelece que as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis.
Por seu turno, o artigo 1º alínea j) do Código de Processo Penal define criminalidade violenta como sendo as condutas que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e a autodeterminação sexual ou contra autoridade pública e sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos.
O crime de roubo protege vários bens jurídicos, como seja o património, a integridade física e a liberdade da vítima, sendo mesmo na sua forma simples (artigo 210º nº 1 do Código Penal) e tentada (artigos 22º e 23º do Código Penal) punido com pena superior a cinco anos.
Por tal razão, os crimes de roubo, p. e p. pelo artigo 210º nº 1 do Código Penal, mesmo na forma tentada, são considerados criminalidade violenta, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1º alínea j) e 67º-A nº 3 do Código de Processo Penal.
Deste modo, também os crimes de roubo simples, p. e p. pelo artigo 210º nº 1 do Código Penal, na forma consumada ou tentada, se encontram excluídos da aplicação do perdão.
Sopesando tudo quanto acima se disse e analisando os crimes praticados pelo arguido, conclui-se que todos os crimes em que foi condenado estão excluídos da aplicação do perdão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 7º alíneas b) i) e g) da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Pelo exposto, não de aplica qualquer perdão à pena que o arguido AA se encontra a cumprir, devendo os autos aguardar o seu termo.
Notifique e comunique ao TEP e ao EP.»
2. O Ministério Público interpôs recurso desse despacho nos termos constantes da motivação que juntou aos autos da qual extrai as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª Norma jurídica violada: (i.) art.º 9.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Civil; (ii.) art.º 7.º, n.º 1, al. b), i, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/Ag.; (iii.) art.º 7.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 38- A/2023, de 2/Ag., quando conjugado com o art.º 67.º-A, n.ºs 3, do C.P.P., e art.º 1.º, al.s j) e l), do C.P.P.
2.ª Elemento interpretativo literal: do art.º 7.º, n.º 1, al. b), i, da Lei n.º 38-A/2023, de 2/Ag., resulta que o roubo “simples” não foi expressamente excluído do perdão, ao contrário do roubo agravado.
3.ª Elemento interpretativo lógico: o art.º 7.º, n.º 1, al. b), i., expressamente excluiu o roubo agravado, previsto pelo art.º 210.º, n.º 2, do C.P., do âmbito do perdão; se o legislador excluiu o mais, o roubo agravado, não excluiu o menos, o roubo “simples”.
4.ª Elemento interpretativo sistemático: uma aplicação literal da al. g) esvaziará de sentido o n.º 1, al. b), em violação do princípio de perfeição legal do texto normativo, impondo-se uma rejeição do sentido literal estrito e exigindo-se uma harmonização interna da norma interpretada.
5.ª O art.º 7.º, n.º 1, al. b), insere-se numa lista de exclusões formais, quais sejam determinados tipos objectivos de ilícito, considerados geradores de maior danosidade ou alarme social, enquanto a al. g), verdadeira “válvula de escape”, remete para conceitos exclusivamente substanciais, como sejam a especial vulnerabilidade de certos homens e mulheres e as suas circunstâncias.
6.ª De forma idêntica, já antes o legislador havia “construído” o complexo “edifício” do art.º 67.º-A do C.P.P., ainda que com ordem inversa: no n.º 1, al. b), apresentou um conceito material de vítima especialmente vulnerável; ao invés, o n.º 3 fez uma remissão formal para os tipos de crime contidos no art.º 1.º
7.ª Nas duas normas, a arquitectura legiferante é idêntica, devendo ser idêntica a interpretação, ou seja, com recurso aos critérios existenciais do n.º 1 do art.º 67.º-A: no art.º 7.º, n.º 1, al. g), a vulnerabilidade que excluiu o perdão lançará raízes sobre uma “especial fragilidade”, um autêntico desequilíbrio, um radical risco existencial.
8.ª Só a interpretação teleológica, firmada numa prévia interpretação sistemática, saberá devolver ao texto normativo o seu verbo radical.
9.ª Em suma e em abstracto, o Direito que urge dizer é o reconhecimento do perdão de pena ou amnistia fundados em crime de roubo “simples”, previsto pelo art.º 210.º, n.º 1, do Cód. Penal, a menos que a vítima seja materialmente vulnerável, com um radical risco existencial.
10.ª Em concreto, deverá ser declarado o perdão parcial de 1 ano da pena única de prisão aplicada ao arguido, assim se devolvendo ao texto normativo o seu verbo radical, o pulsar do logos legiferante.
3. O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
4. O condenado não apresentou resposta ao recurso.
5. O tribunal recorrido, nos termos do artigo 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, sustentou o despacho recorrido nos seguintes termos: (transcrição)
«Na verdade, considera-se que os motivos constantes do despacho recorrido não ficaram prejudicados com os fundamentos e conclusões constantes do recurso apresentado pelo Ministério Público.
Com efeito, o legislador, de forma clara e inequívoca, elencou os casos concretos aos quais não quis que o perdão consagrado na Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto fosse aplicado, o que fez no respectivo artigo 7º.
E para o efeito, fê-lo com recurso a uma técnica legislativa muito simples, enumerando os casos de exclusão do perdão através de números, alíneas e subalíneas.
O legislador começou por elencar os casos de exclusão, tendo por referência o tipo de crime e/ou bem jurídico protegido (nº 1 alíneas a) a f)).
Subsequentemente, o legislador escolheu as exclusões por referência à qualidade
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT