Acórdão nº 1067/23.9T8CTB.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-03-19

Data de Julgamento19 Março 2024
Ano2024
Número Acordão1067/23.9T8CTB.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO)

Adjuntos: Luís Cravo
Fernando Monteiro


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(…)

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Em 12.6.2023, A..., S. A., instaurou a presente ação declarativa comum contra B..., Lda., pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 77 710,95, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

Alegou, nomeadamente: celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho (melhor indicado no art.º 2º da petição inicial/p. i. e documentos de fls. 14 e seguintes); no dia 28.7.2017, ocorreu um acidente de trabalho na obra de construção de um pavilhão, em ..., que vitimou o trabalhador AA; na qualidade de seguradora da entidade empregadora (Ré), suportou as despesas e encargos discriminados no art.º 56º da p. i.; no respetivo processo de acidente de trabalho a Ré reconheceu que “o acidente de trabalho em causa nos autos foi causado por violação das regras de segurança[1], responsabilidade também afirmada no processo-crime referido nos autos (v. g., no art.ºs 27º e 28º da p. i. e documentos de fls. 33 e 51 verso); pretende ser reembolsada, pela referida entidade empregadora, tendo em conta o disposto nos art.ºs 18º, n.º 1 e 79º, n.º 3, da Lei n.º 98/2009, de 04.9/LAT[2] e 28º, n.º 1 das Condições Gerais da Apólice do referido contrato de seguro (com a epígrafe “direito de regresso do segurador”).

A Ré contestou, alegando, em suma, que nunca foi interpelada pela A. para qualquer pagamento e, no processo de acidente de trabalho, se a A. tivesse entendido que existia responsabilidade de terceiro não se teria conciliado nos termos em que o fez, pelo que deverá assumir integralmente as consequências do sinistro.

Observado o contraditório, por saneador-sentença, de 09.11.2023, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo declarou «verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta deste Juízo Central Cível [Juízo Central Cível de Castelo Branco], em razão da matéria, para conhecer o litígio que opõe a Autora A..., S. A., à Ré B..., Lda., por ser competente, para esse efeito, o Juízo do Trabalho», pelo que absolveu a Ré da instância.

Inconformada, a A. apelou, formulando as seguintes conclusões

1ª - A A. fundamentou o pedido no direito de regresso que lhe assiste em virtude de ter suportado diversas despesas (hospitalares, de deslocação, de farmácia, entre outras) e de ter pago o capital de remição, perdas salariais, indemnização por incapacidade temporária absoluta e parcial e as despesas, fixadas pelo competente Juízo de Trabalho no respetivo processo especial emergente de acidente de trabalho, que teve de suportar com o sinistrado AA na sequência de um acidente de trabalho, ocorrido no dia 28.7.2017, quando trabalhava para a sua entidade patronal, aqui Ré, em violação das regras de segurança, o que fez no âmbito de um contrato de seguro que com esta havia celebrado.

2ª - O direito de regresso é um direito novo que tem por base o próprio contrato de seguro e que surge na esfera patrimonial da seguradora com o pagamento da indemnização.

3ª - A relação invocada na p. i., visando o exercício daquele direito, consubstancia uma relação jurídica autónoma, embora conexa com a relação laboral.

4ª - Nela pretende discutir-se em via principal o contrato de seguro de acidente de trabalho celebrado entre as partes e a violação pela entidade patronal de normas imperativas de segurança no trabalho.

5ª - Não se trata de apurar qualquer questão do direito do trabalho, mais concretamente emergente de acidente de trabalho.

6ª - Não visa apurar-se a obrigação da seguradora decorrente do acidente de trabalho, mas se tem ou não direito de regresso contra a tomadora do seguro por violação das regras de segurança.

7ª - Acresce que, como resultou da factualidade apurada, no âmbito da ação emergente do acidente de trabalho (Proc. 636/18....), a Ré B..., Lda. reconheceu e admitiu, expressamente, que o acidente de trabalho objeto dos autos foi causado por violação das regras de segurança.

8ª - Concluíram as Sentenças proferidas (transitadas em julgado) no âmbito dos Processos 636/18...., 80/17.... e 383/18...., no sentido de atribuir à Entidade Patronal, aqui Ré/recorrida, a exclusiva responsabilidade na produção do sinistro dos autos por inobservância das regras sobre segurança a que estava obrigada – designadamente art.º 15º, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e b) da Lei n.º 102/2009, de 10.9, art.ºs 33º e 35º do DL n.º 50/2005, de 25.02, bem como dos mais elementares princípios de segurança e higiene e saúde no trabalho previstos nos art.ºs 127º e 281º do Código do Trabalho – e por se verificar o nexo de causalidade entre essa inobservância e a produção do acidente (cf. Docs. 5 e 6, juntos com a p. i.).

9ª - O Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco é o Tribunal competente para apreciar e decidir o presente litígio, pelo que deverá ser ordenado o prosseguimento dos presentes autos.

10ª - A Sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 79º, n.º 3 da Lei 98/2009, de 04.9, 211º, n.º 1 da Constituição da Republica Portuguesa, 40º e 126 da Lei 62/2013, de 26.8 (LOSJ) e 96º e 99º do Código de Processo Civil.

A Ré não respondeu.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa decidir da competência em razão da matéria para conhecer do objeto do litígio - se, atenta a natureza da relação substancial pleiteada, o Tribunal recorrido é competente para julgar a ação ou se essa competência cabe ao Juízo do Trabalho, sendo aquele materialmente incompetente.


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II. 1. A matéria a considerar é a que resulta do relatório que antecede.

2. Cumpre apreciar e decidir.

A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições do Código de Processo Civil (art.º 60º, n.º 1 do Código de Processo Civil/CPC[3]). Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (n.º 2).

São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 64º).

As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art.º 65º).

A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a)).

3. Nos termos da Lei da Organização do Sistema Judiciário/LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8), que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário:

- Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território (art.º 37º, n.º 1).[4]

- Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 40º, n.º 1). A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada (n.º 2).

- Compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000 (art.º 117º, n.º 1, a)).[5]

- Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, nomeadamente, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho (art.º 126º, n.º 1, alínea b)); das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais (alínea c)).[6]

4. No capítulo do Código do Trabalho/CT (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12.02) relativo à prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais, além de preceitos atinentes aos princípios gerais e à formação dos trabalhadores (art.ºs 281º e 282º), estabelece-se: o trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional (art.º 283º, n.º 1); o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista neste capítulo para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro (n.º 5); a garantia do pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho que não possam ser pagas pela entidade responsável, nomeadamente por motivo de incapacidade económica, é assumida pelo Fundo de Acidentes de Trabalho, nos termos da lei (n.º 6); a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de doenças profissionais é assumida pela segurança social, nos termos da lei (n.º 7).

A última norma do mesmo capítulo (art.º 284º, sob a epígrafe “Regulamentação da prevenção e reparação”) reza o seguinte: “o disposto neste capítulo é regulado em legislação específica”.

5. É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte (art.º 8º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009/LAT[7], de 04.9).

Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais (art.º 18º, n.º 1).

O direito à reparação compreende as seguintes prestações: a) Em espécie - prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde...

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