Acórdão nº 1/21.5S1LSB-B.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 07-06-2023

Data de Julgamento07 Junho 2023
Ano2023
Número Acordão1/21.5S1LSB-B.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. n.º 1/21.5S1LSB-B.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular nº 1/21.5S1LSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 3, foi deduzida pelo Ministério Público acusação pública contra AA, sendo-lhe imputada a prática imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo arts. 2.º, n.º 1, al. an), 3.º, n.º 2, al. i) e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de um crime de injúrias agravado, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1 e 184.º ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c) ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.

Remetidos os autos para julgamento, por despacho de 03-01-2023, a Senhora Juiz titular do processo decidiu, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.ºs 1, al. a), e 3, al. d), do CPPenal rejeitar parcialmente a acusação pública por manifestamente infundada, por não conter a narração dos factos e os factos não constituírem crime.
*
Inconformado com esta decisão, recorreu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, solicitando a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que determine o recebimento da acusação pública deduzida devendo a Srª juíza proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, seguindo os autos os seus habituais trâmites.
Apresenta em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação:
«I. Por douto despacho judicial proferido no dia 03/01/2023 a Meritíssima Juiz rejeitou parcialmente a acusação quanto aos factos descritos relativos à prática do crime de detenção de arma proibida, nos termos do disposto no art.º 311º, n.ºs 2, al. a) e 3, al. d) do C.P.P.;
II. Admitindo-se que os factos narrados não integram a prática do crime de detenção de arma proibida, certo é que não deixam de constituir um crime: o de tráfico e mediação de armas, p. e p. pelo art.º 87º, n.º 1 da Lei N.º 5/2006, de 23/02;
III. Apesar disso, a Meritíssima Juiz não retirou qualquer ilação nesse sentido;
IV. Ora, se o Juiz divergir da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e quiser saná-la antes do julgamento, ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º C.P.P., deve proceder ao enquadramento jurídico que tenha por correto daqueles factos;
V. Tal circunstância, representava uma mera alteração (não substancial) da qualificação jurídica que sendo comunicada ao arguido não implicava qualquer limitação dos seus direitos de defesa nem estava dependente da sua concordância – cf. decorre do art.º 358º, n.º 3 do C.P.P.
VI. O art.º 311º, n.º 3, al. d) do C.P.P. prevê taxativamente que a acusação só deve ser rejeitada se os factos narrados não constituírem pura e simplesmente nenhum crime;
VII. E o despacho de acusação proferido nos autos descreve factos que são suscetíveis de integrar os elementos objetivo e subjetivo do crime de tráfico e mediação de armas;
VIII. Ao rejeitar parcialmente a acusação em vez de proceder à alteração (não substancial) da qualificação jurídica no momento em que proferiu o despacho de saneamento do processo, a
Meritíssima Juiz violou o disposto no artigo 87º, n.º 1º da Lei N.º 5/2006, de 23/02, no artigo 311º, n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal e no artigo 32º, n.º 5 da Constituição da
República Portuguesa.»
*
*
Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer e expôs de forma desenvolvida e aprofundada as suas razões, pugnando a final, pela manutenção do despacho recorrido.
*
Não foram apresentadas respostas ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal.
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se é incorrecta a decisão do Tribunal a quo que rejeitou, por manifestamente infundada parte da acusação pública e se se lhe impunha efetuar alguma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação.

Antes de passarmos à apreciação do recurso importa ter presente a decisão que constitui seu objecto, que é do seguinte teor (transcrição):
«I.
Autue como Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.
II.
O Tribunal é o competente.
Não existem nulidades, excepções ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer
e que obstem à apreciação do mérito da causa (art. 311.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).
III.
Da acusação pública deduzida contra o arguido AA
O Ministério Público deduziu acusação pública contra o Arguido AA
imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo arts. 2.º, n.º 1, al. an), 3.º, n.º 2, al. i) e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de um crime de injúrias agravado, p. e p. pelos arts. 181.º, n.º 1 e 184.º ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal e um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c) ex vi art. 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal.
Ora, o art. 311.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP) determina que recebidos os
autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou
incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
Acrescenta o n.º 2 do mesmo normativo legal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. A concretização do conceito “manifestamente infundada” surge dilucidada no n.º 3 do referido preceito, considerando-se uma acusação manifestamente infundada quando: a) não contenha a identificação do arguido; b) não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam ou d) se os factos não constituírem crime.
Para aferir a conformidade de uma acusação é necessário recorrer ao art. 283.º, n.ºs 3, 7 e 8 do CPP. Assim, nos termos do art. 283.º, n.º 3, al. b) do CPP é necessário que na acusação conste, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Decorre da Constituição da República Portuguesa no seu art. 32.º, n.º 4 que o processo penal
tem estrutura acusatória, isto é, o objecto do processo penal é fixado pela acusação. É a narração sintética dos factos que vincula tematicamente o Tribunal, na medida em que delimita o seu poder cognitivo. Esta vinculação do Tribunal à exposição dos factos, abrange necessariamente os factos integradores de todos os elementos típicos do crime, quer os objectivos, quer os subjectivos e ainda todos os factos que possam relevar para a determinação da medida da pena, nomeadamente circunstâncias agravantes ou atenuantes (cfr. Maia Costa, “Código de Processo Penal Comentado”, 3.ª Edição Revista, Almedina, pág. 954).
Nas palavras de Maia Gonçalves, “a acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios elementos, não tem condições de viabilidade” (in “Código de Processo Penal”, Almedina, pág. 667).
No caso dos autos, ao arguido é imputada a prática de um crime de detenção de arma proibida, através dos arts. 2.º, n.º 1, al. an), 3.º, n.º 2, al. i) e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Para tanto, vem acusado da prática dos seguintes factos:
“Em data não concretamente apurada, mas seguramente antes do dia 20 de Janeiro de 2021, AA, então residente na Rua ..., ..., ... Lourosa e através do site da OLX, publicitou, desde o mês de Outubro de 2020, e sob o nome de BB a venda de um bastão extensível da Classe A, pelo preço de €120,00, que é um instrumento portátil telescópico, rígido ou flexível, destinado a ser empunhado como meio de agressão ou de defesa.
Para tanto, o arguido criou o anúncio com o ..., referindo que residia no Concelho de Santa Maria da Feira, no Distrito de Aveiro e possuía o email: CC...@gmail.com e com o contacto telefónico ....
O arguido conhecia as características de tal arma e sabia que não podia importá-la, adquiri-la ou por qualquer meio obter a mesma ou cedê-la nas circunstâncias referidas a um indivíduo, cuja identidade se desconhece.”
Vejamos.
O art. 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sob a epígrafe “detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, no n.º 1, al. d) prevê que quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desactivar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo (…) bastão extensível é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
Por “bastão extensível” entende-se o “instrumento portátil telescópico, rígido ou flexível, destinado a ser empunhado como meio de agressão ou defesa” (art. 2.º, n.º 1, al. an) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro), estando classificado como uma arma de tipo A, de acordo com o art. 3.º, n.º 2, al. i) do mesmo diploma, cuja venda, aquisição, cedência, detenção, uso e porte de armas, acessórios e munições é
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT