Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 272/2021

ELIhttps://data.dre.pt/eli/actconst/272/2021/07/06/p/dre
Data de publicação06 Julho 2021
SeçãoSerie I
ÓrgãoTribunal Constitucional

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 272/2021

Sumário: Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura.

Processo n.º 1161/19

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica n.º 1/2018, de 19 de abril, doravante LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade da interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura.

Para fundamentar tal pedido, o recorrente alega que a norma em causa foi julgada inconstitucional no Acórdão n.º 227/2015, da 1.ª Secção, na Decisão Sumária n.º 363/2015, da 1.ª Secção, e na Decisão Sumária n.º 434/2019, da 1.ª Secção, verificando-se assim o pressuposto previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.

De acordo ainda com o requerimento do Ministério Público, todas as decisões referidas transitaram em julgado.

2 - Foram notificados, nos termos conjugados do artigo 54.º e do n.º 3 do artigo 55.º da LTC, o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia da República.

O Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.

O Presidente da Assembleia da República ofereceu igualmente o merecimento dos autos e remeteu uma nota técnica sobre os trabalhos preparatórios conducentes à aprovação da norma contida no artigo 334.º do Código do Trabalho, dando conta que a disposição em causa se mantém, no essencial, desde o Código de Trabalho de 2003.

3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

II - Fundamentação

Pressupostos de cognição

4 - De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma que tenha julgado inconstitucional em três casos concretos.

Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da Lei do Tribunal Constitucional, que determina pertencer a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, previsto naquela Lei.

5 - O pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado nos presentes autos tem por base três decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade.

Trata-se, em primeiro lugar, do Acórdão n.º 227/2015, que julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, «a interpretação conjugada das normas contidas no artigo 334.º do Código do Trabalho e no artigo 481.º, n.º 2, proémio, do Código das Sociedades Comerciais, na parte em que impede a responsabilidade solidária da sociedade com sede fora de território nacional, em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo com uma sociedade portuguesa, pelos créditos emergentes da relação de trabalho subordinado estabelecida com esta, ou da sua rutura».

Tendo tal julgamento sido reafirmado pelas Decisões Sumárias n.º 363/2015 e 434/2019, encontram-se reunidas as condições indispensáveis à apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.

B. Do mérito

6 - A dimensão normativa que integra o objeto do pedido corresponde ao sentido interpretativo que, nos três casos acima mencionados, os tribunais então recorridos imputaram à conjugação do artigo 334.º do Código do Trabalho (CT) com o proémio do n.º 2 do artigo 481.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

O artigo 334.º do CT tem a seguinte redação:

«Artigo 334.º

Responsabilidade solidária de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo

Por crédito emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, respondem solidariamente o empregador e sociedade que com este se encontre em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, nos termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais.» (itálico aditado)

Inserido no âmbito das disposições gerais (Capítulo I) aplicáveis às sociedades coligadas (Título VI), o artigo 481.º do CSC dispõe, por seu turno, o seguinte:

«Artigo 481.º

(Âmbito de aplicação deste Título)

1 - O presente título aplica-se a relações que entre si estabeleçam sociedades por quotas, sociedades anónimas e sociedades em comandita por ações.

2 - O presente título aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal, salvo quanto ao seguinte:

a) A proibição estabelecida no artigo 487.º aplica-se à aquisição de participações de sociedades com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, sejam consideradas dominantes;

b) Os deveres de publicação e declaração de participações por sociedades com sede em Portugal abrangem as participações delas em sociedades com sede no estrangeiro e destas naquelas;

c) A sociedade com sede no estrangeiro que, segundo os critérios estabelecidos pela presente lei, seja considerada dominante de uma sociedade com sede em Portugal é responsável para com esta sociedade e os seus sócios, nos termos do artigo 83.º e, se for caso disso, do artigo 84.º;

d) A constituição de uma sociedade anónima, nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 488.º, por sociedade cuja sede não se situe em Portugal.

A interpretação sindicada situa-se numa zona de confluência entre o regime jurídico aplicável à relação emergente de contrato de trabalho, decorrente do CT, e o chamado direito das sociedades coligadas, positivado nos artigos 481.º a 508.º-F do CSC, refletindo o modo como a articulação entre aquele e este foi estabelecida pelos tribunais comuns a partir da remissão para os «termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais», constante do segmento final do artigo 334.º do CT.

O artigo 334.º do CT dispõe sobre as garantias de créditos do trabalhador em caso de incumprimento do contrato de trabalho, estabelecendo como regime-regra aplicável ao universo das sociedades coligadas o da responsabilidade solidária do empregador e da sociedade «que com este se encontre em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, nos termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais».

O artigo 481.º do CSC, por sua vez, define o âmbito de aplicação do regime jurídico das sociedades coligadas, previsto nos artigos 481.º a 508.º-F do mesmo Código, subordinando-o, nos seus n.os 1 e 2, à verificação cumulativa de dois pressupostos essenciais.

O primeiro pressuposto respeita à forma jurídica dos sujeitos intervenientes na relação de coligação (n.º 1). Através dele, o legislador delimita o âmbito formal de aplicação do regime jurídico das sociedades coligadas (cf. Engrácia Antunes, "O âmbito de aplicação do sistema das sociedades coligadas", Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, V. II, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 95-116, p. 95), ou o seu âmbito pessoal de aplicação (cf. Rui Pereira Dias, "Anotação ao artigo 481.º", Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume VII, Coimbra, Almedina, 2014, pp. 15-42, p. 19), reservando-o para as relações que entre si estabeleçam «sociedades por quotas, sociedades anónimas e sociedades em comandita por ações». Por força do princípio de tipicidade acolhido no n.º 1 do artigo 481.º do CSC, ficam excluídas do âmbito subjetivo de aplicação do regime constante do respetivo Título VI as coligações com sociedades em nome coletivo, em comandita simples ou todas as demais empresas que não tenham configuração societária, assim como empresas em nome individual, cooperativas, estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, agrupamentos complementares de empresas, fundações e associações (Rui Pereira Dias, Responsabilidade por exercício de influência sobre a administração de sociedades anónimas - uma análise de direito material e direito de conflitos, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 246 a 258, e Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2002, p. 279).

O segundo pressuposto prende-se com o âmbito espacial de aplicação das normas constantes do Título VI do CSC. Sem prejuízo das exceções representadas pelos aspetos do regime das sociedades coligadas contemplados nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 481.º do CSC, o mesmo «aplica-se apenas a sociedades com sede em Portugal» - mais concretamente, a sociedades que tenham localizada em território nacional a sua sede real e efetiva (cf. Rui Pereira Dias, "Anotação ao artigo 481.º", loc. cit., p. 24; Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de...

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