Acórdão nº 37/18.3EABRC.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 19 de Setembro de 2023

Magistrado ResponsávelFLORBELA SEBASTIÃO E SILVA
Data da Resolução19 de Setembro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I.

No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 37/18...., foi proferida decisão em 02-03-2023, com a refª ...39, na sequência de remessa dos autos para julgamento após prolação de despacho instrutória de pronúncia, relativamente ao arguido AA, através do qual o Tribunal a quo decidiu absolver o arguido nos seguintes termos: “Analisados os factos vertidos no despacho de pronúncia, entende o Tribunal ser inócua e revelar-se um ato inútil, a realização da audiência de julgamento.

Com efeito, para que uma conduta possa ser qualificada como ilícito penal é necessária a prova dos factos que integrem o tipo objetivo e o tipo subjetivo do ilícito.

Ora, entende o Tribunal que, ainda que se venham a dar como provados todos os factos por que o arguido se encontra pronunciado, não se poderá inferir pela existência de um ilícito penal.

Dispõe o artigo 13.º, do Código Penal, que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, não se podendo presumir que o agente agiu nem com dolo, nem com negligência.

Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que não estão vertidos no despacho de pronúncia todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito, para que se possa concluir pelo preenchimento do dolo.

Num crime doloso, como aquele por que o arguido vem pronunciado, há-se provar-se, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objetivos do tipo). O dolo como elemento subjetivo – enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objetivas - constitutivo do tipo legal.

Ora, ainda que se viessem a dar como provados todos os factos vertidos no despacho de pronúncia, o tribunal entende não se poder concluir pela verificação do elemento subjetivo do tipo de crime de venda ou ocultação de produtos ou artigos, dado que, para existir dolo, necessário é que o arguido tenha conhecimento da ilicitude da sua conduta e, ao longo dos factos vertidos na pronúncia, em lado algum se faz menção ao elemento intelectual do dolo, não se podendo entender tal como implícito – cfr., a título de exemplo, o teor do ac. proferido pelo T.R.C., pr. n.º 189/14.1PFCBR.lC1, 07/03/2018, disponível in www.dgsi.pt : “O comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos (…)”.

Com efeito, como afirma o Ac. da RG, in CJ nº 165, II, 2003, “não existem presunções de dolo; e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da ação concreta.

Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indireta, através de atos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito.

Não se pode pois ter como implícita ou subentendida a descrição do dolo.

Não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena.

Tal falta também não poderá ser, em fase de julgamento, suprida pelo tribunal, acrescentando-se o facto em falta, como salienta, a título de exemplo, o ac. do T.R.P., pr. n.º 134/13.1GASPJ.C1.P1, de 08/04/2015.

Como o douto acórdão acabado de citar refere, também não será de recorrer à figura jurídica da alteração substancial dos factos, na medida em que a integração dos factos novos não implica a imputação de crime diverso, implica é que uma conduta atípica, sem relevância jurídico criminal, se transforme em conduta típica, ou seja, numa conduta criminosa.

E, como resulta diretamente do disposto nos artigos 1º, alínea f), 358º e 359º do Código de Processo Penal, o mecanismo legal da alteração substancial e não substancial dos factos situa-se num outro plano, tendo sempre como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontram devidamente descritos factos integradores de um tipo de crime.

Não se pode assim, em total desvirtuação dos objetivos do instituto da alteração substancial dos factos, usá-lo para justificar uma introdução de factos novos em julgamento.

Assim, chegados à fase da audiência com uma acusação/pronúncia onde é descrita uma conduta atípica, não há mecanismo legal que permita reparar essa verdadeira anomalia do processo.

Neste sentido, quanto à falta, na acusação, de factos integradores do elemento subjetivo, foi inclusive já proferida pelo STJ decisão uniformizadora de jurisprudência, através do acórdão datado de 20.11.2014, proferido no processo 17/07.4GBORQ.E2-A.S1, publicado no DR, I série, nº 18, 27 de janeiro de 2015, p. 582 – 597 (disponível, também, em www.dgsi.pt), com o seguinte sumário: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.” De tudo assim decorrendo que, in casu, não poderá o arguido ser condenado pela prática do crime por que vinha pronunciado, dada a falta de preenchimento do dolo, quanto ao seu elemento intelectual, o que leva à impossibilidade de se concluir pela existência de um ilícito penal.

Pelo que, sendo de evitar a prática de atos inúteis (no que se traduziria a realização da audiência de julgamento), decide-se, desde já, pela absolvição do arguido relativamente ao crime de venda ou ocultação de produtos ou artigos , pr. no artigo 321º, com referência à al. d) do artigo 320º, ambos do novo CPI aprovado pelo citado DL n.º 110/2018, conduta igualmente prevista e punida por lei anterior vigente no momento da sua prática (art. 324º, com referência ao artigo 323º, alínea c), ambos do CPI, aprovado pelo do DL n.º 36/2003 de 5 de Março, com a redação introduzida pela Lei n.º 83/2017 de 18 de Agosto.

Sem custas criminais – art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P.

Notifique.” II. Inconformado veio o Ministério Público interpor recurso em 11-04-2023, com a refª ...60, através do qual oferece as seguintes conclusões: 1. Por despacho proferido nos presentes autos no dia 30 de Setembro de 2022, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA para julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de venda de produtos contrafeitos, p. e p. pelo artigo 321º, do Código da Propriedade Industrial.

  1. Por despacho proferido no dia 14 de Fevereiro de 2023, foi proferida decisão instrutória que pronunciou o arguido pela prática do sobredito ilícito criminal, previsto no artigo 321º, com referência à al. d) do artigo 320º, ambos do novo CPI aprovado pelo DL n.º 110/2018, conduta igualmente prevista e punida por lei anterior vigente no momento da sua prática, designadamente, no artigo 324º, com referência ao artigo 323º, alínea c), ambos do CPI, aprovado pelo do DL n.º 36/2003 de 5 de Março, com a redação introduzida pela Lei n.º 83/2017 de 18 de Agosto.

  2. Sucede que, no dia 2 de Março de 2023, a Mma. Juiz a quo entendeu que a dita decisão de pronúncia não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjectivo do ilícito, considerando não se poder concluir pela verificação do elemento subjectivo do tipo de crime em apreço, por não ser feita menção ao elemento intelectual do dolo.

  3. Por esse motivo, considerou que a dita...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT