Acórdão nº 507/23 de Tribunal Constitucional (Port, 12 de Julho de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Maria Benedita Urbano
Data da Resolução12 de Julho de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 507/2023

Processo n.º 661/2023

1.ª Secção

Relatora: Conselheira Maria Benedita Urbano

Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – RELATÓRIO

1. A., arguido e aqui recorrente, foi, como consta do acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP) a seguir citado, condenado, no final do processo criminal que correu os seus termos no Juízo Central Criminal de Penafiel do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, inter alia, “pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, como reincidente, nos termos dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal, na pena de oito (8) anos de prisão”, tendo vindo recorrer dessa decisão da 1.ª instância para o TRP. Rematou esse recurso, no que aqui releva, com as seguintes conclusões:

“[…]

57. Quanto à reapreciação da matéria de direito entendemos que o Tribunal a quo conheceu e valorou prova nula, por obtenção através de metadados.

58. A controvérsia nasce pela Lei n.º 32/2008, de 17 de julho não estar conforme a nossa Constituição da República e ter sido declarada a sua inconstitucionalidade pelo acórdão do Tribunal Constitucional 268/2022.

59. O Acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional, polémico até e bastante comentado na comunicação social, foi mais além do pedido de fiscalização e teve em consideração a proteção constitucional da conservação de todos os metadados identificados nas normas fiscalizadas, independentemente de serem dados de base ou dados de tráfego e de darem ou não suporte a comunicações intersubjetivas. Neste sentido justificando e, transcrevendo do referido aresto, o seguinte:

«Ora, a conservação e acesso a todos os metadados a que se referem as normas fiscalizadas – dados de base, dados de tráfego que não pressupõem uma comunicação interpessoal e dados de tráfego relativos a comunicações interpessoais –, porque são aptos a revelar aspetos relevantes da vida privada e familiar dos cidadãos, submete-se a outras garantias constitucionais – designadamente, os direitos à reserva da intimidade da vida privada e ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do artigo 26.º da Constituição) e o direito à autodeterminação informativa (n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º da Constituição). O tratamento de todos estes dados, ao manter o rastreio dos passos dos utilizadores, seja quanto à sua localização, seja quanto à utilização que faz da internet, seja quanto às pessoas com quem contacta ou tenta contactar, por telefone, correio eletrónico, mensagens escritas ou através da internet, é suscetível de comprimir os direitos à reserva da intimidade da vida privada, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa».

60. O referido Acórdão engloba também os dados de base conforme se percebe.

61. Embora argumente o tribunal que a localização celular e a faturação detalhada não consta no processo, o que é relevante é que a mesma foi acedida pelos Órgãos de Polícia Criminal – O.P.C. conforme consta dos autos.

62. Aliás desde já se diga que também há dados de tráfego nesta investigação, e tudo isto foi valorado e assente em matéria de facto provada.

63. Senão vejamos, o arguido A. é identificado, a fls. 397 dos presentes autos, o auto de Audição, Gravação e Relatório de todas interceções telefónicas em curso, reportadas ao período compreendido entre 30 de Janeiro 2020 e 12 de Fevereiro 2020, refere (a PJ) que o suspeito B., que se encontrava a ser escutado, continuava a ser contactado por diversos clientes para o tráfico de droga. Um desses números que contactou, alegadamente, o B. para o tráfico de droga era o número …...

64. De notar que o arguido A., não era o suspeito, nem visado, no presente inquérito.

65. Note-se que a PJ classifica aquele cliente como “B1” pelo simples facto dessa ter sido a Antena de localização celular que se ativou quando o arguido fez a chamada para o suspeito B..

66. Já estamos no âmbito dos dados de tráfego produzidos no âmbito da comunicação realizada entre duas pessoas.

67. Partindo desta premissa, o MP, de acordo com o proposto pela PJ, solicitou ao Juiz de Instrução Criminal (JIC), a interceção e gravação das chamadas telefónicas de e para o número …, o IMEI a ele associado, Faturação detalhada das chamadas recebidas (trace-back), SMS e MMS e a Localização celular. Tendo tal sido deferido por despacho do JIC em 18 de fevereiro de 2020.

68. As interceções ao referido número tiveram como data de início o dia 26.02.2020 (cf. fls. 419), e tendo acesso aos dados e metadados gerados pelo referido número de telemóvel a PJ conseguiu identificar o arguido A., o seu número de identificação civil (BD, a sua residência, data de nascimento, naturalidade e ainda que também estaria a utilizar um outro número e ainda o contacto de um alegado cliente do arguido A. – Cf. fls. 496 e seguintes dos autos

69. Resulta cristalino que o arguido A. apenas é identificado através do acesso aos metadados (Lei n.º 32/2008, de 17 de julho) e da mesma forma se procedeu para identificar os seus clientes.

70. Acrescente-se ainda que também há metadados a fls. 1369 a 1371 quando se pede pela PJ os registos de passagens das viaturas do arguido nas fronteiras de Portugal com Espanha no período início do ano de 2020 até maio de 2021, registos que o tribunal a quo considerou nos pontos facto provados ponto 45) também são dados de tráfego.

71. O tribunal a quo veio invocar legislação que no seu entender não contende com a declaração de constitucionalidade e legitimaria a recolha de dados que houve nestes autos. E veio invocar os seguintes normativos legais, para sustentar a sua posição: a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (a Lei do Cibercrime), especialmente o artigo 14.º; o Código de Processo Penal, muito particularmente os artigos 187º a 189º; a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que transpõe para a nossa ordem jurídica a diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, respeitante à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações; a Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto (Lei de Proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações), especialmente o seu artigo 6.º; e a Lei 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das comunicações eletrónicas)».

72. Desde já se diga que as leis invocadas pelo tribunal não se destinam à investigação criminal e não podem servir para “contornar” a declaração de inconstitucionalidade. Neste sentido e por concordar inteiramente com o Acórdão da Relação do Porto que em seguida se transcreve.

73. Tal conforme fez notar o Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão no processo 5011/22.2JAPRT-A.P1, de 07-12-2022 onde foi relator o Desembargador PEDRO VAZ PATO onde consta do respetivo sumário que:

74. «1 – Tendo o acórdão do Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho (Lei relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto de oferta de serviços de comunicações eletrónicas), não podemos tentar tornear esse acórdão, “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”; ou seja, não podemos recorrer a outras normas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram a essa declaração de inconstitucionalidade.

II – Não é, por isso, legalmente possível recorrer para esse efeito aos regimes dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal (relativo às comunicações em tempo real, não à conservação de dados de comunicações pretéritas), da Lei n.º 4172008, de 18 de agosto (relativo à proteção contratual no contexto das relações entre empresas fornecedoras de serviços de comunicações eletrónicas e seus clientes, campo distinto do da investigação criminal) e da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime).

III – Não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam graves inconvenientes para a investigação criminal».

75. Neste sentido entendemos que efetivamente houve recolha e valoração de prova proibida nos presentes autos. Nesta esteira resta-nos convocar os seguintes normativos legais, o artigo 32.º da CRP (“Garantias de processo criminal”, no seu n.º 8, prescreve que «São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».

76. Preceito constitucional alicerçado no Código Processo Penal (CPP) no seu artigo 126.º, que é suficientemente forte para consagrar o efeito remoto da utilização de métodos de prova proibidos.

77. O artigo 126º, n.º 1, do CPP dispõe que «São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas» (o n.º 2 do preceito faz uma indicação exemplificativa de provas ofensivas dessa integridade) e, por sua vez o n.º 3 deste preceito legal refere que «Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular».

78. É no artigo 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP, mandamento constitucional replicado no artigo 126.º do CPP, que encontramos fundamento legal para a admissibilidade em processo penal para a existência de uma consequência negativa numa prova derivada de outra que enferma de nulidades por proibição de prova.

79. Como tal o Acórdão recorrido violou 32.º, n.ºs 1 e 8, da CRP conjugado com o 126.º do CPP e ainda foram ainda...

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