Acórdão nº 78/22.6T8ALD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 07 de Junho de 2023

Magistrado ResponsávelHELENA BOLIEIRO
Data da Resolução07 de Junho de 2023
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra: I – Relatório 1.

Por decisão proferida pelo seu Presidente, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) determinou a cassação do título de condução n.º ...73 a AA, com os demais sinais dos autos, com o fundamento na perda da totalidade de pontos atribuídos ao condutor, pela condenação em duas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, no âmbito de duas condenações criminais.

  1. Inconformado, o condutor AA interpôs impugnação judicial da referida decisão da ANSR, que deu entrada no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, o qual proferiu sentença em que julgou improcedente o recurso interposto … 3.

    … AA interpôs o presente recurso em que finalizou a respectiva motivação com as seguintes conclusões … “1. A Sentença em crise mantém a decisão da autoridade administrativa da cassação do seu título de condução.

  2. O que smo colide com a ratio da Lei e a intenção do Legislador: nos considerandos da Proposta de Lei 336/XII da Presidência de Conselho de Ministros e com a Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 54/2009, de 14 de maio. Da qual se extrai «aumentar o grau de percepção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adoptando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.

  3. É que a decisão administrativa surpreendeu o Recorrente com a cassação do título de condução – este já havia sido sancionado em sede Penal (tutela de ultima ratio).

  4. O Recorrente já havia sido definitivamente julgado nos processos crime tramitados neste Tribunal 44/18.... e 87/20.... – pelos mesmos factos.

  5. Viola o ne bis in idem previsto no art.º 29º, nº 5, da CRP como princípio de preclusão e proibição de cúmulo de ações pelos mesmos factos.

  6. Ora, a Sentença em crise ao aplicar a norma do art.º 148º do Código da Estrada, viola, pois, a Constituição da República Portuguesa, não podendo por isso manter-se, smo.

  7. A norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional por violação de caso julgado e violação do ne bis in idem, quando interpretada no sentido de permitir uma 2ª decisão relativamente aos (mesmos) factos definitivamente julgados; assim, inconstitucionalidade das normas 148º e 149º do Código da Estrada.

    … 11. O art. 29º, no 5 da CRP preceitua que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos, assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada.

  8. Este instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

  9. Também importa aqui mobilizar o princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que “proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do estritamente necessário ou adequado – é que a cassação in casu é mais gravosa do que as penas a que o Recorrente foi sujeito nos citados processos crime… e a maior gravidade da sanção mal se compreende, smo, quando como supra já consignamos estamos fora da tutela de ultima ratio… 14. Mais gravosa ou não qualquer condenação posterior representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP.

    … 4.

    Admitido o recurso, veio o Ministério Público apresentar resposta em que pugna no sentido da sua improcedênia … 5.

    Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta … emitiu parecer em que adere à argumentação contida na resposta do Ministério Público da 1.ª instância … 6.

    Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.

  10. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

    Cumpre agora decidir.

    * II – Fundamentação …[1].

    … são as seguintes as questões a decidir: - Violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, e inconstitucionalidade das normas dos artigos 148.º e 149.º do Código da Estrada, relativas à cassação do título de condução.

    - Violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e inconstitucionalidade das normas dos artigos 148.º e 149.º do Código da Estrada, relativas à cassação do título de condução.

    * 2.

    A sentença recorrida.

    2.1.

    Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição): “1.

    O arguido foi condenado, pela prática, em 24/06/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, do artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de 8 meses de prisão, suspensa na respetiva execução, pelo período de 12 meses (sujeita à obrigação de frequentar consultas de alcoologia e do curso de prevenção rodoviária, e à entrega de € 400,00 aos Bombeiros Voluntários ..., no prazo de 6 meses), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 meses, por sentença transitada em julgado em 25/09/2018, proferida no âmbito do processo sumário n.º 44/18...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda.

  11. O arguido foi condenado, pela prática, em 18/10/2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, do artigo 292.º, nº 1, do Código Penal, numa pena de 1 ano de prisão, suspensa na respetiva execução, por igual período, sujeita a regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano, por sentença transitada em julgado em 06/01/2021, proferida no âmbito do processo sumário nº 87/20...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda”.

    2.2.

    Por sua vez, quanto ao direito, a 1.ª instância manteve a decisão administrativa impugnada, que determinou a cassação da licença de condução de que é titular o recorrente, o que fundamentou do seguinte modo … “(…) Em sede de recurso de impugnação judicial, o arguido alega, em primeiro lugar, que existe violação do princípio ne bis in idem, por já ter sido definitivamente julgado no âmbito dos processos de natureza criminal e, aí, ter cumprido as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, … Resulta claramente das normas acima citadas que é a prática de contraordenações graves ou muito graves, a condenação em pena acessória ou injunção de proibição de conduzir (rectius, a prática do ato que ditou a condenação em pena acessória ou a injunção de proibição de conduzir) que determina a posterior perda de pontos para efeitos de uma possível cassação do título de condução, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada.

    …2. [2 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 09/05/2018, no processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto] Atentando ao citado artigo 148.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada é, pois, evidente que a perda de pontos é consequência da prática de uma infração, com reflexos na condução estradal, quer de natureza contraordenacional (n.º 1), quer de natureza penal (n.º 2).

    Ora, o sistema de pontos traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizar, em termos de perigosidade, determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais, que podem vir ou não a ter determinados efeitos no futuro, no que toca à licença de condução de veículos automóveis atribuída a um determinado particular, efeitos esses que poderão culminar na aplicação da sanção de cassação da respetiva carta de condução.

    Por sua vez, a decisão de cassação da carta de condução tem caráter administrativo e pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, assente fundamentalmente no número e gravidade daquelas condutas ilícitas – contraordenacionais ou penais – e do decurso do tempo que sobre elas se vier a verificar, neste particular, para efeitos de eventual recuperação de pontos, nos temos do disposto nos artigos 121.º-A, n.º 1 e 2, e 148.º, nº 5 e 7, todos do Código da Estrada.

    Visa, assim, tal sistema apenas evidenciar, através de um registo central – com um sentido claramente pedagógico, de satisfação de necessidades de prevenção, fundamentalmente de ressocialização –, os efeitos penais ou contraordenacionais das infrações cometidas, segundo a respetiva gravidade, tendo fundamentalmente em conta, não as sanções aplicadas, mas as próprias infrações, como vimos supra.

    Quer dizer, o sistema de pontos tem um sentido essencialmente pedagógico, seja pela subtração de pontos efetuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infração concretamente cometida, seja pela sua concessão, nos termos acima referidos, estimulando desse modo o condutor para comportamentos estradais positivos, sendo que aquela subtração, e designadamente a que está em causa nos presentes autos, ocorre como efeito automático de cada infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo da gravidade da infração cometida e do relevo que esta tem no somatório de outra(s), tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última deve ou não ser mantida.

    Assim sendo, o sistema de pontos será, pois, também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar da mesma, inserindo-se, portanto, tal desiderato, no âmbito dos poderes de administração do Estado.

    O título de condução é uma licença pessoal atribuída pela Administração Pública ao cidadão, depois de este ter demonstrado, pelas vias regulamentadas, ter os requisitos necessários, de capacidade, conhecimento e destreza para o exercício da condução, que reflete...

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