Acórdão nº 244/23 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução11 de Maio de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 244/2023

Processo n.º 956/2022

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Tributário de Lisboa, foram interpostos dois recursos, com fundamento em inconstitucionalidade.

No primeiro, é recorrente o Ministério Público, que interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, de 30 de junho de 2022, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.ºs 1, alínea a), da Lei n.º 28/82 (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, “LTC”), tendo por objeto as normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do anexo II da Portaria n.° 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação dada pela Declaração de Retificação n.° 16-A/2009, de 13 de fevereiro, cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo com fundamento em inconstitucionalidade, por violação da reserva parlamentar.

O segundo recurso, da mesma decisão, foi interposto pela Autoridade Nacional de Comunicações (abreviadamente ANACOM), Impugnada no processo principal, em que é Impugnante a A., S.A.. A recorrente identifica como objeto recursal as normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do Anexo II da Portaria n.º 1473- B/2008, de 17 de dezembro, na redação dada pela Portaria n.º 1307/2009, de 19 de outubro, cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação da reserva de função legislativa que se pode extrair das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

2. Na parte que releva para a apreciação do presente recurso, pode ler-se na fundamentação da decisão recorrida:

“Aqui chegados, tendo-se concluído que o tributo em discussão nos presentes autos tem a natureza de contribuição financeira, cabe, então, apurar se, como alega a Impugnante, o artigo 102.º n.º 2 da Lei n.º 4/2005 e os artigos 1.º alínea b), 3.º e Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008 violam o princípio da legalidade fiscal, na dimensão de reserva de lei formal, consagrado no artigo 165.º n.º 1 alíena i) da CRP.

(...)

O Tribunal Constitucional concede ainda que o regime jurídico de uma taxa ou contribuição financeira, vertido em ato legislativo, possa ser concretizado ou desenvolvido por via regulamentar, nomeadamente através de portaria.

Para que tal opção normativa se mostre conforme a Lei Fundamental, é, contudo, necessário que se verifique um pressuposto lógico e elementar: exige-se que o ato legislativo através do qual é criada a taxa ou a contribuição financeira contenha, em termos minimamente densificados, os seus elementos essenciais (incidência objetiva e subjetiva e taxa) [Cfr. Acórdãos n.ºs 152/2013, 80/2014, 539/2015 e 268/2021].

(...)

No caso dos autos, a razão do dissídio reside na discussão de uma contribuição dinanceira introduzida na ordem jurídica pela Lei n.º 4/2005, ou seja, por uma lei da Assembleia da República.

(...)

Situação distinta é a de saber se a Lei n.º 4/2005 contém, em si mesma, os elementos essenciais do regime da contribuição financeira em apreço e se a Portaria n.º 1473-B/2008 se cinge ao mero desenvolvimento de aspetos de natureza iminentemente técnica (ainda que relacionados com aqueles elementos essenciais).

Pois bem: se é certo que, através da Portaria n.º 1473-B/2008, se visa regulamentar a Lei n.º 4/2005, concatenando os dois diplomas, não pode deixar de se constatar que, no que respeita à incidência objetiva e subjetiva e à taxa, essa regulamentação é feita em termos manifestamente inovatórios.

Dos termos em que o tributo se encontra previsto no artigo 105.º n.º 2 não é possível extrair uma disciplina minimamente desenvolvida dos aspetos essenciais do seu regime, designadamente quanto à taxa ou taxas a aplicar, quanto à existência de diferentes escalões de tributação ou mesmo quanto ao critério de repartição dos custos a compensar através do tributo em causa.

É, na verdade, a Portaria n.º 1473-B/2008, em particular, no seu Anexo II, que cria escalões, que elege como critério decisivo para a repartição dos custos a compensar os proveitos relevantes diretamente conexos com a atividade de comunicações eletrónicas relativa ao ano anterior àquele em que é efetuada a liquidação da taxa e que, em função desse critério, define o universo de sujeitos passivos que integra cada um dos escalões e, consequentemente, a taxa concretamente aplicada aos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas enquadrados em cada escalão.

Ora, tais elementos concorrem e são determinantes para a quantificação do próprio tributo, respeitando ainda à sua incidência e integrando, como tal, a reserva da função legislativa, pelo que jamais poderiam ter sido objeto de normação primária por via regulamentar, no âmbito do exercício da função administrativa [Cfr., neste sentido, Acórdão do TC n.º 152/22, cit].

(...)

Em suma, a Portaria n.º 1473-B/2008 vai muito além da mera concretização de aspetos iminentemente técnicos do regime consagrado, no essencial, em ato legislativo (no caso, a Lei n.º 4/2005), extravasando o âmbito próprio dos atos de natureza regulamentar em matéria tributária e invadindo a esfera exclusiva dos atos legislativos.

(...)

Impõe-se, assim, desaplicar as normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação dada pela Declaração de Retificação n.º 16-A/2009, de 13 de fevereiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação da reserva de função legislativa, que se pode extrair das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da CRP”.

3. Admitidos pelo tribunal a quo os recursos ora interpostos, os recorrentes foram notificados para apresentar alegações. O Ministério Público argumentou da seguinte forma:

«III

(Conclusões)

1.ª) O Ministério Público, «notificado da douta sentença proferida nos autos, acima e à margem identificados [proc.º n.º 905/10.0BELRS, do Tribunal Tributário e Lisboa, de 30 de junho de 2022, fls. …] a qual não aplicou, as normas constantes dos n°s 1 e 2 do anexo II da Portaria n° 1473-B/2008, de 17 de Dezembro, na redação dada pela Declaração de Retificação n° 16-A/2009, de 13 de Fevereiro, com fundamento em inconstitucionalidade, por [violação da] reserva da função legislativa, "que se pode extrair das disposições conjugadas da alínea i) do n° 1 do art. 165° e do n° 2 do art. 266° das CRP", vem da mesma Interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos arts. 70°, n° 1, al. a), 72°, n°s 1, al. a) da Lei n° 28/82, de 15/11 (Lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

2.ª) A “taxa anual devida pela actividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações electrónicas [integrados no escalão 2]” está legalmente concebida como um tributo de natureza comutativa, quid pro quo, do tipo “contribuição” (financeira a favor de uma entidade pública).

3.ª) com a função de “taxa de regulação económica”, concretamente para financiar os custos da atividade regulação (lato sensu, regulação, supervisão e fiscalização) dos fornecedores de redes e serviços de comunicações eletrónicas, levada a cabo pela ANACOM (Constituição, art. 165.º, n.º 1, al. i); Lei n.º 5/2004 cit., art. 105.º, n.ºs 1, alínea b), 4 e 5, e ainda dos seus artigos 56.º, nomeadamente alínea d), 73.º, n.ºs 1 e 2, 76.º-B, n.ºs 1 a 5, 102.º, n.ºs 1 e 2, e 111.º, n.º 1; Lei n.º 67/2013, cit., art. 36.º n.º 2; e a Exposição de motivos da Portaria n.º 1473-B/2008, cit.).

4.ª) Dessa análise do respetivo regime jurídico, nomeadamente à luz do preceituado nos artigos 105.º, n.ºs 1, alínea b), 4 e 5, e ainda dos seus artigos 56.º, nomeadamente alínea d), 73.º, n.ºs 1 e 2, 76.º-B, n.ºs 1 a 5, 102.º, n.ºs 1 e 2, e 111.º, n.º 1, todos da Lei n.º 5/2004 cit., e Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, cit., n.ºs 1, 4 e 5, que regulam aspetos atinentes à respetiva incidência subjetiva e objetiva e a finalidade, é de concluir que, embora oficialmente denominada “taxa”, o tributo em causa é de qualificar como “contribuição financeira” (a favor de uma entidade pública).

5ª) A reserva parlamentar, relativa, de competência legislativa, estalecida no artigo 165. °, n.º 1, alínea i) da Constituição, incide especificamente sobre a emanação de um “regime geral”, não obstando à criação individualizada de “contribuições financeiras” (e de taxas).

6.ª) Todavia, precisamente por força dessa reserva de competência, os elementos essenciais, das contribuições financeiras têm de estar definidos em ato legislativo do Parlamento ou do Governo.

7.ª) No caso vertente, porém, a incidência objetiva (facto gerador, incluindo isenções objetivas, e método de quantificação do tributo), elementos essenciais da “taxa anual devida pela actividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações electrónicas [integrados no escalão 2]” em apreço, estão definidas nas normas regulamentares constantes dos n.ºs 1 e 2, do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008,

8.ª) de modo inovatório, nomedamente face ao preceituado face ao preceituado nos n.ºs 1, alínea b), e 4, do artigo 105 (Taxas), da Lei n.º 5/2004, citada.

9.ª) Portanto, o caso vertente respeita a normas regulamentares que dispõem, inovatoriamente, quanto a elementos essenciais (facto gerador, incluindo isenções objetivas, e método de quantificação do tributo) de uma “contribuição financeira”, integrada na reserva relativa de competência legislativa, da Assembleia da República.

10.ª) Em conclusão, as normas jurídicas, regulamentares, constantes dos n.ºs 1, 2, do Anexo II da Portaria n.º 1473-B/2008, cit., criaram e definiram uma incidência objetiva (facto gerador e quantificação do tributo, incluindo isenções...

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