Acórdão nº 377/23 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Junho de 2023

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução07 de Junho de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 377/2023

Processo n.º 354/23

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

*

Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, adiante designada «LTC»), da decisão proferida por aquele Tribunal, em 31 de janeiro de 2023, que decidiu anular o ato de liquidação da taxa anual devida pelo exercício da atividade de prestador de serviços postais relativa ao ano de 2017, impugnado pela ora recorrida.

O Tribunal a quo recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade, as normas constantes dos n.ºs 2 e 3 do Anexo IX da Portaria n.º 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria n.º 296-A/2013, de 2 de outubro, «na parte em que determinam a incidência objetiva e a taxa a aplicar aos prestadores de serviços postais enquadrados no escalão 2, por violação das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do art. 165.º e do n.º 2 do art. 266.º da CRP», e, em consequência, anulou o ato impugnado.

2. Pela decisão sumária n.º 254/2023, o relator decidiu apreciar o mérito do recurso na fase de exame preliminar, conquanto o respetivo thema decidendum se cingia a matérias objeto de jurisprudência consolidada. Fez-se constar na decisão singular que o “presente caso não apresenta particularidades em relação àquele que foi apreciado no Acórdão n.º 754/2022 (por sua vez estribado no Acórdão n.º 152/2022), acima indicado, nem qualquer outra razão que justifique apreciação diversa da que aí foi adotada. Assim sendo, porque não se divisa fundamento para reavaliar o entendimento firmado, cumpre reiterar aqui o juízo de inconstitucionalidade então formulado, o que determina a improcedência dos recursos interpostos.

3. A recorrente reclamou para a conferência desta decisão, ora nos seguintes termos:

“(…) 1. O n.º 1 do artigo 78.º-A da LOPTC confere ao Relator a possibilidade de decidir o recurso, em exame preliminar, sem notificar o Recorrente para apresentar alegações, «se entender (…) que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objeto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada», caso em que o Relator pode prof

erir Decisão Sumária, «que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal».

2. São vários os pressupostos de aplicação desta disposição processual, tendo a Decisão Reclamada qualificado o «caso sub iudicio como de excecional simplicidade na aceção contida no artigo 78.º-A, n.º 1, 2.ª parte, da LTC» (cf. n.º 6 da Decisão reclamada), assumindo que o mesmo «não apresenta particularidades em relação àquele que foi apreciado no Acórdão n.º 754/2022 (por sua vez estribado no Acórdão n.º 152/2022)», não se justificando reavaliar o entendimento então firmado, que reitera (cf. n.º 4 da Decisão reclamada).

3. A Recorrente, ora Reclamante, não desconhece a jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa à utilização desta faculdade processual conferida ao Relator (sintetizada por CARLOS LOPES DO REGO em “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Almedina, 2010, pp. 243-245), nem tão pouco desconhece os pressupostos em que o legislador se baseia para «delimitar o campo de intervenção individual do relator sobre o mérito do recurso» (cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 7.ª edição, Almedina, 2022, p. 314) mas, no caso concreto, existem, no entender da Reclamante, três razões fundamentais que demonstram que a questão sub judice não pode ser considerada simples, exigindo o prosseguimento do recurso, com a abertura da fase de alegações:

− A primeira razão prende-se com o facto de a jurisprudência firmada no Acórdão n.º 152/2022, da 3.ª Secção, e reiterada no Acórdão n.º 754/2022, da 2.ª Secção, se encontrar em contradição com a demais jurisprudência do Tribunal Constitucional (i) em matéria de contribuições financeiras e (ii) em matéria de autonomia regulamentar da Administração, como se demonstra pela própria apreciação daquela jurisprudência e pelos pareceres jurídicos juntos com a presente Reclamação, o que se faz ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 651.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 69.º da LOPTC, e se procurará desenvolver adiante;

− A segunda razão prende-se com o facto de se encontrar pendente de apreciação, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, o Recurso n.º 535/2022 (proveniente do Tribunal Tributário de Lisboa – Processo n.º 1115/15.6BELRS), em que está em causa a liquidação da taxa anual devida pelo exercício da atividade de prestador de serviços postais relativa no ano de 2014, sendo recorrente a ANACOM e recorrida a A., S.A. (abreviadamente A.), no qual foram produzidas alegações e juntos os pareceres jurídicos também juntos com a presente Reclamação, o que justificaria que uma Decisão Sumária, como a que se questiona na presente Reclamação, devesse ter em conta o Acórdão que viesse a ser proferido pela 1.ª Secção nesta matéria, de modo a refletir a ponderação que esta vier a efetuar em face da argumentação desenvolvida pela Recorrente e da análise constante dos mencionados pareceres jurídicos;

− A terceira razão prende-se com o facto de esta Decisão Sumária abrir a possibilidade de se iniciar um processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade (artigo 82.º da LOPTC) sem que, verdadeiramente, tenha existido, no Tribunal Constitucional, um debate suficientemente aprofundado e consistente em torno jurisprudência firmada no Acórdão n.º 152/2022, da 3.ª Secção. e reiterada no Acórdão n.º 754/2022, da 2.ª Secção, em que se baseia a Decisão Reclamada, que, sendo uma jurisprudência nova quanto ao (i) padrão de densificação legislativa aplicável às contribuições financeiras e quanto à (ii) delimitação da função regulamentar da Administração, acaba por funcionar como “bitola de decisão em casos sucessivos”, sem que seja, sequer, objeto de uma segunda ponderação aprofundada, a qual, no entender da Recorrente, ora Reclamante, deverá existir, não só pelas razões aduzidas nos pareceres jurídicos juntos com a presente Reclamação, mas também por aquelas que se encontram no voto de vencido exarado pelo Conselheiro Pedro Machete no Acórdão n.º 754/2022, da 2.ª Secção (que demonstra, por si só, que as questões sub judice não são pacíficas, mesmo nesse Tribunal Constitucional).

4. Enunciados sumariamente os fundamentos da presente Reclamação, importa agora proceder ao seu desenvolvimento.

Vejamos:

A) O âmbito da “reserva de regime geral” consagrada na alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa (CRP ou Constituição): a contradição entre a jurisprudência firmada no Acórdão n.º 152/2022, da 3.ª Secção, e reiterada no Acórdão n.º 754/2022, da 2.ª Secção, e a demais jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de contribuições financeiras e em matéria de autonomia regulamentar da Administração

5. A primeira razão porque se entende dever o presente recurso ser objeto de instrução, com apresentação de alegações, reside no facto de o precedente jurisprudencial invocado como base da Decisão Sumária Reclamada se encontrar em contradição com a demais jurisprudência do Tribunal Constitucional (i) em matéria de contribuições financeiras e (ii) em matéria de autonomia regulamentar da Administração, aspeto que não foi suscitado pela Recorrente, ora Reclamante, nas alegações apresentadas nos recursos n.ºs 300/2020 (Vindos do Tribunal Tributário de Lisboa – Processo n.º 640/17.9BELRS) e 965/2021 (Vindos do Tribunal Tributário de Lisboa – Processo n.º 642/14.7BELRS) que estiveram na origem do Acórdão n.º 152/2022, da 3.ª Secção, e do Acórdão n.º 754/2022, da 2.ª Secção, respetivamente.

6. Com efeito, só em 19 fevereiro de 2022 foi a Recorrente, ora Reclamante, confrontada com a jurisprudência do Acórdão n.º 152/2022, pelo que apenas pôde questionar essa orientação jurisprudencial nas alegações que apresentou em 13 de julho de 2022, no recurso n.º 535/2022 (proveniente do Tribunal Tributário de Lisboa – Processo n.º 1115/15.6BELRS), pendente de apreciação na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional.

7. As alegações apresentadas em 29 de novembro de 2021, no recurso n.º 965/2021, que esteve na origem do Acórdão n.º 754/2022, são anteriores à prolação do Acórdão n.º 152/2022, pelo que, verdadeiramente, com a Decisão Sumária proferida no presente processo, em 24 de abril de 2023, não foi permitida à Recorrente, ora Reclamante, a apresentação dos argumentos, suportados pelos pareceres jurídicos entretanto emitidos, que demonstram, no seu entender, a improcedência do juízo de inconstitucionalidade formulado nos Acórdãos n.ºs 152/2022 e 754/2022 e, rectius, na Decisão Sumária Reclamada.

8. Com efeito, a Decisão Sumária Reclamada, por apropriação do juízo de inconstitucionalidade formulado nos Acórdãos n.ºs 152/2022 e 754/2022 (sendo o segundo uma mera reprodução do primeiro), (i) ao afirmar «a exigência de que os elementos essenciais das contribuições financeiras sejam definidos por ato legislativo do Parlamento ou do Governo» (n.º 14 do Acórdão n.º 152/2022) e, (ii) ao extrair da inscrição do “regime geral das contribuições financeiras” na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, o corolário de que «a Constituição atribui, pelo menos de modo implícito, natureza legislativa a toda a matéria das contribuições na ausência de um regime geral» (n.º 14 do Acórdão n.º 152/2022) afasta-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional inaugurada pelos Acórdãos n.ºs 365/2008, 613/2008 e 153/2013 (com continuidade em jurisprudência posterior, podendo referir-se, entre...

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