Acórdão nº 2164/18.8JAPRT.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 02 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelFÁTIMA FURTADO
Data da Resolução02 de Maio de 2023
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

(Secção Penal) I. RELATÓRIO No processo comum coletivo nº 2164/18.8JAPRT do Juízo Central Criminal ..., J..., do Tribunal Judicial ..., foi submetido a julgamento o arguido AA.

O acórdão, proferido e depositado em 6 de dezembro de 2022, tem o seguinte dispositivo: «Por todo o exposto, acordam as Juízes que compõem este Tribunal Colectivo em: - condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º, com referência ao disposto pelo n.º 3 do artigo 14.º, ambos do Código Penal, na pena de 8 anos e 10 meses de prisão; - condenar o arguido ao pagamento das custas do processo (taxa de justiça e encargos) por força dos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal em conjugação com o artigo 8.º, número 9, e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), fixando-se a taxa de justiça em 3 UC; - julgar o pedido de indemnização parcialmente procedente, por provado, e, em consequência, condenar o demandado ao pagamento da quantia de € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros), para ressarcimento dos danos morais causados com a sua actuação, acrescida dos juros vencidos desde esta decisão até integral pagamento; - custas por demandante e demandado, na proporção do decaimento (sem prejuízo da dispensa de pagamento de que beneficiem).»*Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões: «

  1. Quanto à decisão sobre a matéria de facto 1ª - Deu-se por provado, no ponto 2 da decisão sobre a matéria de facto, que o arguido quis experimentar a arma que a vítima lhe queria vender, mas o que resultou provado foi que o arguido aceitou experimentar a arma, o que é diferente de querer.

    1. - Querer é uma manifestação de vontade e de iniciativa própria, ao passo que aceitar é admitir algo que é proposto ou oferecido; esta última traz, assim, subjacente, o pressuposto de que a iniciativa não partiu do recorrente, mas antes que lhe foi apresentada por outra pessoa.

    2. – Conforme resulta das declarações prestadas pelo recorrente, transcritas no corpo das presentes alegações, prestadas na primeira sessão da audiência de discussão e julgamento, a 19/09/2022, conforme acta de fls…, ficheiro áudio 20220919144605_6042041_2870533, minuto 00:03:40 ao minuto 00:04:15 e nas declarações, igualmente supra transcritas, prestadas em igual sessão, constantes do mesmo ficheiro áudio, minuto 00:20:25 ao minuto 00:21:03, conclui-se, e nada mais nos autos há que o possa contrariar, que a vítima, certo dia, propôs vender a arma ao recorrente, que não estava interessado em adquirir; e conclui-se, também, que a vítima, passados uns dias, surgiu novamente, já com munições, convidando o recorrente para experimentar a arma.

    3. - Assim sendo, nada existindo nos autos (conforme refere a própria motivação), que infirme ou contrarie as declarações do arguido quanto a essa circunstância, mal andou o tribunal a quo, ao dar como provado que o arguido quis experimentar a arma, já que o que resultou provado foi que o arguido/recorrente aceitou experimentar a arma, impondo-se, por isso, que o ponto 2. da fundamentação de facto da sentença seja alterado para “O arguido aceitou experimentar a sobredita arma”.

    4. – No que respeita ao ponto 5. da decisão quanto à matéria de facto, encontra-se, salvo o devido respeito, incompleto, dado que o circunstancialismo descrito pelo recorrente evidencia outro pormenor: a vítima, após efectuar o primeiro disparo, e antes de passar a arma ao arguido, abriu a arma e remuniciou-a, fechando-a e entregando-a posteriormente ao arguido/recorrente.

    5. - Isto mesmo resulta do que foi relatado, pelo recorrente, em audiência de discussão e julgamento, transcrito no corpo das presentes alegações, e presentes no ficheiro áudio 20220919144605_6042041_2870533, minuto 00:19:15 ao minuto 00:20:20: o recorrente assistiu à abertura da arma, feita pela vítima, viu igualmente a arma ser remuniciada, igualmente pela vítima, que, após, a fechou e a entregou ao recorrente.

    6. - A formulação deste ponto, tal como se encontra no acórdão em crise, não evidencia este aspecto essencial, que foi relatado pelo recorrente, e que foi imprescindível para que o recorrente formasse a convicção de que a arma estava em segurança, ou seja, que não efectuaria qualquer disparo; 8ª – Por isso, ao constatar que a arma disparou e atingiu a vítima, o recorrente ficou supreendido, tal como notou a Meritíssima Juiz, na audiência de julgamento; porque não estava à espera que a arma disparasse, pois esta tinha sido, momentos antes, aberta e municiada pela vítima.

    7. – Face ao relatado pelo recorrente ao tribunal e inexistindo nos autos prova que contrarie ou infirme esse relato, impõe-se, quanto ao ponto 5. da fundamentação de facto, a sua alteração para “Após, o arguido constatou que BB abriu a arma, remuniciou-a, fechou-a, tendo entregue depois ao arguido para que experimentasse”.

    8. – Relativamente ao ponto 8 da decisão quanto à matéria de facto, e analisando a respectiva motivação, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que o douto tribunal a quo confunde três acções distintas: levantar a arma, apontar a arma e efectuar o disparo, reduzindo estes três comportamentos a um só, quando são comportamentos diferentes, desígnios diferentes, com consequências jurídicas diferentes.

    9. - O recorrente o que relatou ao tribunal foi que pretendia pregar um susto ao amigo, apontando-lhe a arma, mas o tribunal a quo, sabe-se lá como, entendeu que o recorrente o que pretendia fazer era, não apontar a arma, mas sim disparar na direcção da vítima. No entanto, as regras da experiência, da lógica e do senso comum o que ditam é que um susto não se prega com um disparo de caçadeira de canos serrados, a menos de 10 metros; prega-se apontando a referida arma (que se sabia, ou se confiava, em segurança). Ou dito de outra forma: basta apontar uma caçadeira para atingir o desígnio de assustar a pessoa a quem se aponta a arma.

    10. – Para além disso, não há qualquer fundamento para a conclusão, do tribunal de primeira instância, de que o recorrente, para assustar a vítima, quis disparar a arma. A motivação refere que o contexto e, sobretudo, o gesto que se lhe seguiu dão a resposta (sendo “gesto” o disparo). Ora, o gesto não poderá ser o sobretudo, pois, com isso, relativiza-se o contexto e a ser assim (ou a permitir que seja assim) os tribunais perderão o seu sentido de ser: se os tribunais se focarem, sobretudo, no gesto, todo e qualquer acto que apresente um resultado tipo será, necessariamente, crime; E bem sabemos que assim não é. A realidade encerra múltiplas circunstâncias, as quais têm relevância penal e, como tal, têm de ser consideradas e valoradas pelos tribunais.

    11. – Há pois que atender ao contexto (tão ou mais importante que o gesto que se lhe seguiu) e que foi referido pelo recorrente, transcrito no corpo das presentes alegações, na primeira sessão de audiência de discussão e julgamento, a 19/09/2022, conforme acta de fls…, ficheiro áudio 20220919144605_6042041_2870533, minuto 00:10:43 ao minuto 00:16:18, minuto 00:25:00 até ao minuto 00:25:48, e do qual resulta que o que o recorrente pensou foi em assustar o amigo, apontando-lhe a arma, no entanto ao levantar a arma ela disparou, tendo-o apanhado de surpresa.

    12. - Em bom rigor, o recorrente, embora quisesse apontar a arma ao amigo para o assustar (o que é diferente de querer disparar) nem sequer chegou a apontar a arma na direcção da vítima, porque ao levantar a arma, ela disparou.

    13. - Não se entende a insistência do tribunal de primeira instância relativamente à forma de assustar a vítima – para assustar o recorrente não teria que disparar a arma, bastar-lhe-ia apontar. E é isto mesmo que é ditado pelas regras elementares de experiência, lógica e senso comum: para alguém se assustar bastará ver uma arma a si apontada; não é necessário realizar qualquer disparo.

    14. - Recapitulemos: o recorrente pensou em pregar um susto ao amigo, apontando-lhe a arma (e não através de um disparo); ao levantar a arma verificou, com supresa, que a mesma disparou; é apenas isto que resulta das declarações prestadas pelo arguido/recorrente na audiência de julgamento.

      Tudo o resto é, salvo o devido respeito, fantasioso. E isto porque as declarações do recorrente não são contrariadas, nem infirmadas por qualquer outra prova produzida em audiência de julgamento, nem são, tão pouco, contrariadas pelas regras de experiência, da lógica ou do senso comum (que, pelo contrário e uma vez mais, até as reforçam).

    15. - Haverá, pois, que proceder à alteração do ponto 8. dos factos provados para os seguintes termos “Nesse momento, a menos de 10 metros, o arguido levantou a arma, julgando que a patilha de segurança estava activada, tendo verificado depois, e com surpresa, que a mesma estava pronta a disparar” e, à eliminação dos pontos I) e J) dos factos não provados.

    16. – Relativamente aos pontos 16. a 22. da fundamentação de facto e à respectiva motivação, o arguido/recorrente, contrariamente ao aí referido, não admitiu ter ponderado usar a arma em BB. O que o recorrente admitiu foi que ponderou apontar a arma à vítima e, assim, pregar-lhe um susto. Ouvindo, de fio a pavio, as declarações prestadas pelo recorrente, não há um único momento em que este tenha admitido ter ponderado disparar a arma.

    17. – No entanto, o tribunal a quo tomou um conceito por outro (apontar e disparar), inquinando todo o raciocínio que fez a partir daí; prova disso é o segmento que consta da motivação “por tudo isto é evidente (…) que não se tratou de um disparo acidental (não querido); pois que o arguido pensou em disparar e executou, de seguida, a acção representada”. O “tudo isto” a que a motivação se refere é, somente, a conclusão, errada, de que o arguido quis disparar. Mas, conforme referimos, o arguido não quis disparar; o arguido apenas ponderou apontar a arma à vítima, para assim a assustar.

    18. - Assim, não pode ser aquela a...

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