Acórdão nº 12/23.6 PBGMR-A.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 02 de Maio de 2023

Magistrado ResponsávelARMANDO AZEVEDO
Data da Resolução02 de Maio de 2023
EmissorTribunal da Relação de Guimarães

Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO 1.

No processo de inquérito (atos jurisdicionais) nº 12/23...., da Procuradoria da República da Comarca ..., em que se investigam factos suscetíveis de integrarem a prática, por individuo desconhecido, do crime de perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º, nº 2 do Código Penal, do qual é vítima a ofendida, o Exmo. Senhor Juiz de Instrução não autorizou a obtenção dos dados requeridos pelo Ministério Público, por despacho datado de 27 de fevereiro de 2023 (ref.ª citius ...11).

  1. Não se conformando com o mencionado despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões (transcrição)[1]: 1. «Os presentes autos iniciaram-se com a denúncia apresentada por AA contra indivíduo de identidade desconhecida dando conta que no período entre Julho de 2022 e Dezembro de 2022 recebeu vários telefonemas a várias horas do dia, com ocultação da linha chamadora, que provocaram inquietação e perturbação psicológica. 2. São, pois, investigados factos susceptíveis, em abstracto, de configurar, entre outros, a prática de um crime de perturbação da vida privada, previsto e punível pelo artigo 190.º, nº2 do Código Penal, crime esse cometido por meio telefónico.

  2. Torna-se imperativo apurar da identidade do(s) autor(es) de tais telefonemas, designadamente os realizados no período entre Julho de 2022 e Dezembro de 2022 (sem prejuízo do prazo máximo de 6 meses para conservação dos dados), com origem num “número privado” para a ofendida AA, titular do telemóvel com o nº ...25.

  3. A Lei nº 32/2008, de 17 de Julho, transpôs para o ordenamento jurídico português a chamada Diretiva Europeia de Retenção de Dados. Este diploma legal nacional, em cumprimento da obrigação de transposição daquela Diretiva, veio obrigar os operadores de comunicações a proceder à retenção de dados (designadamente de tráfego).

  4. O regime normativo constante da Lei n.º 32/2008 foi, desde a data da sua entrada em vigor, fonte de problemas interpretativos, designadamente na sua compatibilização quer com as normas do Código de Processo Penal, concretamente o regime previsto nos artigos 187.º a 189.º, ambos do Código de Processo Penal quer com a Lei nº 109/2009, de 15.09 – Lei do Cibercrime.

  5. Para compatibilização prática destes regimes, muitas vezes até considerados contraditórios considerou-se existirem na verdade duas bases de dados armazenados distintas, para a obrigação/conveniência dos fornecedores de serviços de comunicações quanto à conservação de dados: um geral, que pelo prazo de seis meses habilita os operadores a conservar os dados para efeitos de faturação pelo qual podiam tais dados ser obtidos aplicando as regras próprias do processo penal e da Lei do Cibercrime, a partir da sua entrada em vigor e um regime especial, pelo prazo de um ano, aquele previsto na Lei n.º 32/2008.

  6. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19/04 foi decidido declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral da norma constante do artigo 4 º da Lei n º 32/2008 de 17 de julho, conjugada com o artigo 6 º da mesma lei por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35 º e do n º 1 do artigo 26 º, em conjugação com o n º 2 do artigo n º 18 º, todos da Constituição.

  7. Assim, apesar desta declaração de inconstitucionalidade, ficaram intocáveis e, por isso, são convocáveis no caso em apreço os seguintes normativos: artigos 189.º, n.º 2 e 167.º ambos do Código de Processo Penal, artigo 6.º da Lei nº 41/2004 de 18.08 (concretamente o artigo 6.º, nº7) e 14.º, nº3 da Lei nº 109/2009, de 15.09.

  8. De acordo com os normativos citados, é permitida a obtenção e junção aos autos de dados armazenados, in casu, de registos da realização de conversações ou comunicações – “dados de tráfego” que podem ser solicitados em qualquer fase do processo, por decisão do juiz, quanto aos crimes de catálogo do artigo 187º/1 e quanto aos visados previstos no catálogo do artigo 187º/4 desde que a diligência se revista de relevância probatória, isto é, de acordo com o critério de mera necessidade para a prova e com o juízo proporcionalidade previsto no artigo 18º/2 CRP.

  9. Estão, pois, preenchidos todos os requisitos de facto e de direito para a obtenção dos dados de tráfego junto das operadoras de telecomunicações, concretamente os conservados pelo período de 6 meses.

  10. Não se vislumbra, deste modo, que os elementos de prova que se pretendem obter possam vir a ser obtidos de outra forma que não através da obtenção de dados de tráfego conservados pela operadora de telecomunicações nos termos dos artigos 187.º a 189.º do Código de Processo Penal e com os limites temporais previstos na Lei nº 32/2008.

  11. A leitura conjugada das normas acima referidas, permite concluir que a lei autoriza a obtenção de dados de subscritor e acesso obtidos com fundamento na Lei do Cibercrime e na Lei 41/2004, bem como, permite a obtenção de dados de tráfego e localização obtidos com fundamento na Lei 41/2004, referente a crimes do catálogo e aos visados no artigo 187º/1 e 4 do CPP.

  12. As diligências promovidas são indispensáveis para a descoberta da verdade material dos factos e de quem são os seus autores e, a impossibilidade de obtenção dos dados cujo acesso ora se promove, conduzirá necessária e fatalmente ao arquivamento dos autos impedindo, desta forma, a investigação, detecção e repressão de crimes e um aumento do sentimento de impunidade dos autores e de insegurança da comunidade.

  13. O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 187.º e 189.º, n.º 2 e 167.º ambos do Código de Processo Penal, artigo 6.º da Lei nº 41/2004 de 18.08 (concretamente o artigo 6.º, nº7) e 14.º, nº3 da Lei nº 109/2009, de 15.09.

  14. Pelo exposto e com os fundamentos expendidos, deve a decisão recorrida ser revogada.» 3.

    Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, reforçando os fundamentos do recurso, pugnando pela sua procedência.

  15. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

    II- FUNDAMENTAÇÃO 1. Objeto do recurso O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso do tribunal, cfr. artigos 402, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.

    Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto pelo M.P., a questão a decidir reconduz-se a saber o seguinte: Se existe suporte legal que permita o Juiz de Instrução aceder a dados conservados na posse de operadora de telecomunicações móveis, os quais, a serem divulgados, permitirão previsivelmente conhecer o autor das chamadas realizadas entre julho e dezembro de 2022 para o n.º de telemóvel da ofendida, atenta a origem anónima do chamador, o mesmo é dizer identificar o autor de um crime de perturbação da vida privada, p. e p. pelo artigo 190.º, nº 2 do Código Penal. 2. A promoção do M.P. sobre a qual incidiu o despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição) No âmbito dos presentes autos são investigados factos susceptíveis, em abstracto, de configurar, entre outros, a prática de um crime de perturbação da vida privada, previsto e punível pelo artigo 190.º, nº2 do Código Penal, crime esse cometido por meio telefónico.

    Por esta razão, torna-se necessário apurar da identidade do(s) autor(es) de tais telefonemas, designadamente os realizados no período entre Julho de 2022 e Dezembro de 2022 (sem prejuízo do prazo de 6 meses para conservação dos dados), com origem num “número privado” para a ofendida AA, titular do telemóvel com o nº ...25.

    De acordo com o Parecer nº 21/2000 do Conselho Consultivo da PGR: “1.Os elementos de informação respeitantes aos utilizadores de serviços de telecomunicações, geralmente designados como dados de tráfego e dados de conteúdo, e bem assim os dados de base relativamente aos quais os utilizadores tenham requerido um regime de confidencialidade, que, em qualquer dos casos, se encontrem na disponibilidade dos fornecedores de rede pública e dos prestadores de serviços de telecomunicações de uso público,estão sujeitos ao sigilo das telecomunicações, nos termos dos artigos 17º, nº 2, da Lei nº 91/97, de 1 de Agosto, e 5º da Lei nº 69/98, de 28 de Outubro; 2. Na fase de inquérito, tais elementos de informação, quando atinentes a dados de tráfego ou a dados de conteúdo, apenas poderão ser fornecidos às autoridades judiciárias, pelos operadores de telecomunicações, nos termos e pelo modo em que a lei de processo penal permite a intercepção das comunicações, dependendo de ordem ou autorização do juiz de instrução (artigos 187º, 190º e 269º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal); 3. Em relação aos dados de base, ainda que cobertos pelo sistema de confidencialidade a solicitação do assinante, tendo em consideração que o sigilo profissional em causa releva de um simples interesse pessoal do utilizador que não contende com a respectiva esfera privada íntima, os correspondentes elementos de informação poderão ser comunicados, a pedido de qualquer autoridade judiciária, para fins de investigação criminal, em ordem ao prevalecente dever da colaboração com a administração da justiça…”.

    De resto, conforme se defende no douto aresto da Relação de Coimbra de 09.12.2009, disponível in www.dgsi.pt “I. Na distinção entre «dados de base», «dados de tráfego» e «dados de conteúdo» os primeiros constituem elementos necessários ao estabelecimento de uma base de comunicação, estando, no entanto, aquém dessa comunicação. II. A protecção, entendida como restrição à transmissão de dados de base, opera apenas enquanto tais dados sejam considerados em interligação com outros dados (de tráfego, de localização ou de conteúdo). III. Enquanto isoladamente considerados, tais dados não podem ser considerados como conexos, não estando abrangidos pela restrição legal da Lei...

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