Acórdão nº 218/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 218/2023

Processo n.º 955/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real – Juízo de Competência Genérica de Valpaços, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos A., B. e C., o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão proferida por aquele tribunal no dia 2 de junho de 2022, que recusou a aplicação do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, por considerá-lo inconstitucional. O tribunal recorrido, mostrando-se ciente da abundante jurisprudência constitucional no sentido da não inconstitucionalidade, assumiu um «entendimento bem diferente».

2. Notificadas as partes para alegar, apenas o recorrente aduziu alegações, sustentando a não inconstitucionalidade, o que fez, fundamentalmente, nos seguintes termos:

«(...)

III – Da apreciação da invocada inconstitucionalidade da norma contida no art. 169º, nº 1 do Código Penal:

A decisão recorrida sustenta a inconstitucionalidade da norma contida no art. 169º, nº 1 do Código Penal, a qual prevê e pune a prática do crime de lenocínio, desaplicando-a no caso concreto.

O mencionado art. 169º, nº 1 do Código Penal, tal como configurado atualmente, prevê que comete um crime de lenocínio “quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição”.

A conduta do agente traduz-se, assim, em atos de fomento, favorecimento ou facilitação do exercício, por outra pessoa, da prostituição. O tipo legal de crime abrange situações em que não existe perigo concreto de lesão da liberdade sexual de quem se prostitui.

A conformidade da norma contida no art. 169º, nº 1 do Código Penal com os preceitos constitucionais (mais concretamente com o art. 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa) começou a ser questionada com a alteração do tipo criminal, operada pela Lei nº 65/98 de 02-09, no momento em que deixou de ser exigível, para que se verificasse a prática do crime, que o agente atuasse “explorando situações de abandono ou de necessidade económica da vítima”, alargando, deste modo, o seu âmbito de incriminação.

Atendendo à atual configuração tipológica do crime há que concluir que o que se criminaliza é a atividade profissional ou com fins lucrativos de proxenetismo, em si mesma, sem se exigir que o encaminhamento para a prostituição esteja associado ao aproveitamento de situações em que a pessoa que se prostitui demonstre vulnerabilidades conducentes a défice de autonomia da vontade.

Assim, o que tem sido amplamente discutido, doutrinária e jurisprudencialmente, é se a caracterização atual do crime de lenocínio, ao dispensar, após a revisão de 1998, como elemento estrutural do tipo, o aproveitamento pelo agente de uma situação de abandono social ou de carência económica da vítima, ultrapassa ou não, com ofensa ao princípio da proporcionalidade, o que seria justificado pela função tutelar de um específico bem jurídico-penal.

O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão por diversas vezes.

A primeira vez fê-lo através do Acórdão nº 144/2004, no qual enunciou que “O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social.”, tendo concluído pela não inconstitucionalidade da norma penal.

Tal entendimento foi, posteriormente, reiterado pelo Tribunal Constitucional v.g. nos Acórdãos n.os 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011, 605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018.

Não se desconhece a doutrina que advoga a inconstitucionalidade da incriminação do lenocínio simples. É o caso de Figueiredo Dias, in “O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio constitucional…”, XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa, Coimbra, 2009, 31 s., 39, para quem, «tendo o legislador ordinário eliminado a exigência de que o favorecimento da prostituição se ligasse à “exploração de situações de abandono ou de necessidade económica”, eliminou a referência do comportamento ao bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual e tornou-se infiel ao princípio do direito penal do bem jurídico», «surgindo a incriminação − pode ler-se em Direito penal. Parte geral, I, 2.ª ed., Coimbra, 2007. p. 124 − referida à tutela de puras situações tidas pelo legislador como imorais»; Anabela Rodrigues, “Anotação ao art. 170.º”, Comentário conimbricense do Código Penal. Parte especial, I, Coimbra, 1999, p. 519, para quem a incriminação do lenocínio visa «proteger bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal – o que se tem hoje por ilegítimo».

Também no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 134/2020 foi julgada inconstitucional a norma incriminatória contida no art. 169º, nº 1 do Código Penal, por violação dos arts. 18º, nº 2 e 27º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

Foi entendimento do Tribunal Constitucional no mencionado Acórdão que [cf. infra, o ponto 4].

Até à prolação desse acórdão, a norma constante do art. 169º, nº 1 do Código Penal sempre fora julgada não inconstitucional nos múltiplos pronunciamentos decisórios anteriores do Tribunal Constitucional.

O Acórdão nº 134/2020 veio, assim, provocar uma divergência jurisprudencial, razão pela qual o Ministério Público interpôs recurso para o Plenário, nos termos do art. 79º-D, nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional.

No Acórdão n.º 72/2021, o Tribunal Constitucional resolveu, em Plenário, a divergência de julgados verificada na sequência da prolação do Acórdão n.º 134/2020 e decidiu não julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal.

Fundamenta esse acórdão a não inconstitucionalidade da norma, na seguinte argumentação [cf. infra, o ponto 5].

Através do Acórdão n.º 72/2021, o Plenário do Tribunal Constitucional decidiu a divergência de jurisprudência existente entre as secções do Tribunal, analisando, nomeadamente, todos os argumentos subjacentes aos acórdãos que julgaram a questão de constitucionalidade em sentido divergente, pronunciando-se pela não inconstitucionalidade da norma do lenocínio simples, prevista no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal, reiterando aí a linha jurisprudencial que o Acórdão n.º 134/2020 viera abalar.

Já após a prolação do citado acórdão, outros acórdãos do Tribunal Constitucional, na mesma esteira e invocando os seus argumentos, concluíram não ser inconstitucional a norma contida no n.º 1 do artigo 169.º, do Código Penal, na qual se prevê e pune o crime de lenocínio (Ac. 382/2021, 314/2021, 312/2021, 311/2021, 197/2021 e 144/2021).

É entendimento do Ministério Público que a linha de argumentação traçada no Acórdão n.º 72/2021 (bem como nos posteriores Acórdãos em que o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a mesma matéria), merece acolhimento.

A questão divergente é saber se a norma do art. 169º, nº 1 do Código Penal apenas protege valores não relacionados com direitos e bens consagrados constitucionalmente, e, como tal, não suscetíveis de serem limitadores de outros direitos que uma norma incriminatória sempre comportará.

Num Estado de direito democrático, a intervenção legislativa penal estará sempre, necessariamente, sujeita a limitações constitucionais, designadamente ao princípio do direito penal do bem jurídico. Ou seja, a criminalização de uma conduta pressupõe sempre que essa mesma conduta se mostre suficientemente ofensiva para um bem jurídico com dignidade constitucional, exigindo-se um exercício de ponderação dos direitos em conflito.

No crime de lenocínio existe um aproveitamento económico por terceiros da pessoa prostituída, sendo nosso entendimento de que, nenhuma ordem jurídica, assente na dignidade da pessoa humana poderá admitir, sem censura criminal, que uma pessoa possa ser utilizada por outra, numa dimensão sexual, beneficiando economicamente dessa exploração.

No relacionamento interpessoal há deveres de respeito e de solidariedade.

Pelo facto de a prostituição ser livre e de qualquer pessoa poder dispor da sua sexualidade nos moldes que entender, cobrando pelas interações sexuais que, livremente, entenda manter com terceiros, afigura-se-nos não ser isento de censura jurídico-criminal que outras pessoas, auxiliem, instiguem ou facilitem esse comportamento, beneficiando profissional ou economicamente da conduta sexual de terceiros.

Trata-se, ainda, de proteger a liberdade sexual do agente que se prostitui, cuja liberdade decisória para dispor da sua intimidade poderá ficar reduzida quando entra na equação a mediação de terceiros que atuam profissionalmente ou com fins lucrativos.

Conforme mencionado no Ac. 144/2004: “Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note‑se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja‑se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir...

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