Acórdão nº 39/23 de Tribunal Constitucional (Port, 08 de Fevereiro de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução08 de Fevereiro de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 39/2023

Processo n.º 1020/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), dos acórdãos daquele Tribunal, de 6 de julho de 2022 e 28 de setembro de 2022.

2. Pela Decisão Sumária n.º 773/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«4. De acordo com o requerimento de interposição do presente recurso, o recorrente pretende controverter os seguintes enunciados:

i. «[I]nterpretação e aplicação da dimensão normativa extraída da conjugação dos artigos 7.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, 60.º, 61.º, n.º 1, alíneas a), b) e e), 62.º, n.º 1, 67.º, n.ºs 1 e 3, 113.º, n.º 10, 115.º, 332.º, n.º 1, 333.º, n.ºs 1 e 3, e 334.º, todos do CPP, artigos 20.º e 32.º, n.º 3, da CRP e artigo 6.º, n.º 3, alínea c) da CEDH (…) na dimensão interpretativa normativas segundo a qual o arguido tem-se por legalmente representado pelo defensor oficioso nomeado no ato muito embora em curso o prazo para constituição de defensor mandatado após renúncia do defensor constituído»;

ii. «[A]rtigos 60.º, 61.º, n.º 1, alíneas a) e b), 332.º, n.º 1, 333.º, n.ºs 1 e 3, todos do CPP (…) na dimensão interpretativa normativa segundo a qual não se impõe ao Tribunal a tomada das medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido ante ou pelo menos antes de encerrada a Audiência de Julgamento na ausência do arguido»;

iii. «[I]nterpretação e aplicação da norma conjugada contida nos artigos 105.º, n.ºs 1 e 7, do RGIT, 19.º, 27.º e 41.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, 24.º, n.º 1, alíneas a) e b), da LGT e 258.º e 1178.º, ambos do Código Civil (…) no sentido de se considerar que pratica o crime de abuso de confiança fiscal, na qualidade de gestor de facto, o representante de pessoa coletiva a quem foi conferido mandato em data posterior ao termo do prazo para pagamento da prestação tributária, nomeadamente, em sede de IVA no regime de periodicidade mensal»;

iv. «[N]ormas contidas nos artigos 97.º, n.º 5, 127.º e 374.º, n.º 2 do CPP se bastam, em sede de fundamentação, com uma fundamentação sem qualquer menção à forma como os meios de prova percutiram o espírito do julgador, limitando-se a elencar os meios de prova, sem qualquer menção à credibilidade — ou ausência dela — dos depoimentos e declarações citados» e

v. «[N]ormas contidas nos artigos 97.º, n.º 5, 127.º e 374.°, n.º 2 do CPP se bastam, em sede de fundamentação, com a mera remissão à fundamentação de outros factos».

Segundo o recorrente, as normas enunciadas em i. e ii. reportam-se ao recurso interlocutório que apresentou, sendo o restante objeto do recurso de constitucionalidade reportado ao recurso interposto da sentença condenatória.

5. Apreciemos a admissibilidade do recurso no que concerne à norma descrita em i.

Constitui requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente.

Tal não se verifica no que a esta norma diz respeito.

Para indeferir a arguição de nulidade prevista no artigo 119.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, decorrente de o arguido, ora recorrente, ter sido representado na sessão de julgamento de 30 de novembro de 2022 por defensor oficioso, quando decorria ainda o prazo de 20 dias para constituir, querendo, novo mandatário judicial na sequência de ter sido notificado da renúncia do anterior mandatário judicial, o Tribunal da Relação interpretou o artigo 47.º, n.os 2 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal, no sentido de que, dada a obrigatoriedade da assistência de defensor durante a audiência de julgamento, a cessação do mandato conferido ao advogado renunciante apenas opera uma vez transcorrido o prazo de 20 dias concedido ao arguido para, querendo, constituir novo mandatário, sem que este o faça.

Vale isto por dizer que não aplicou, como ratio decidendi, nenhuma norma cujo sentido pressuponha que, no intervalo de tempo que ocorre entre a notificação ao arguido da renúncia ao mandato por parte do advogado constituído e o esgotamento do prazo de 20 dias para constituir novo mandatário, querendo, o arguido se tenha «por legalmente representado pelo defensor oficioso nomeado no ato», uma vez que, segundo a leitura feita pelo Tribunal recorrido, nessa ocasião o arguido ainda está, de jure, representado pelo mandatário renunciante. No caso dos autos, apenas ocorreu a nomeação de um defensor oficioso porque na sessão em causa o mandatário renunciante faltou. Em suma, a nomeação do defensor oficioso constituiu um acto acidental − não uma consequência da aplicação, como ratio decidendi, da norma que o recorrente pretende ver discutida.

Ora, ao incluir na norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada um pressuposto que não foi efetivamente acolhido na decisão recorrida − qual seja, o de que o mandato forense já cessara e que ao arguido foi imposto, por essa razão, a representação por defensor oficioso no decurso do prazo para constituir novo mandatário −, o recorrente afastou-se irremediavelmente daquele que foi o critério normativo aplicado pelo tribunal recorrido.

6. Apreciemos agora a admissibilidade do recurso no que concerne à norma descrita em ii.

Também neste caso se afigura não ter a norma em causa sido aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, ainda que por razões distintas.

No recurso intercalar interposto a questão foi colocada sob o prisma de uma nulidade processual subsumível ao artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, ou seja, a questão de saber se constituía ou não uma nulidade desse tipo a circunstância de o Tribunal dar por finda a audiência de julgamento sem indagar se o arguido, até então faltoso, pretendia ainda prestar declarações ou tomar medidas para obter a sua comparência para essa finalidade.

Sobre esta questão, o Tribunal da Relação veio a decidir que qualquer nulidade que pudesse ter existido relativamente a tal ocorrência sempre estaria sanada, por não ter sido tempestivamente arguida nos termos do artigo 120.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal.

Só faria sentido aplicar a norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente como pressuposto de aplicação da norma sobre nulidades. Contudo, uma vez que a aplicação da norma sobre nulidades ficou inviabilizada pela razão apontada, a primeira deixou de ter qualquer utilidade processual.

Assim, é de concluir que a norma que constitui objeto do presente recurso não foi aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, o que implica que não possa dela tomar-se conhecimento.

7. Apreciemos agora a admissibilidade do recurso no que concerne à norma descrita em iii.

Igualmente neste caso se afigura não ter a norma em causa sido aplicada como ratio decidendi na decisão recorrida, por incorporar um pressuposto que não foi acolhido – ao invés, foi expressamente rejeitado – pelo Tribunal recorrido.

Com efeito, o Tribunal da Relação não aplicou norma nos termos da qual pudesse «considerar que pratica o crime de abuso de confiança fiscal, na qualidade de gestor de facto, o representante de pessoa coletiva a quem foi conferido mandato em data posterior ao termo do prazo para pagamento da prestação tributária», ou seja, que é o facto de uma dada pessoa ter sido formalmente mandatada para gerir uma certa sociedade, em data posterior ao fim do prazo legal para entrega ao Estado da prestação tributária devida, que autoriza que essa mesma pessoa possa ser condenada como autora do crime de abuso de confiança fiscal, na qualidade de gerente de facto, por factos ocorridos antes. Pelo contrário, repudiou como espúria essa relação, dado que a razão pela qual o recorrente foi condenado pela prática do crime se deveu exclusivamente à circunstância de se ter provado que desempenhou de facto funções de gerência da sociedade nos períodos relevantes para o preenchimento do tipo, sendo para tal juízo irrelevante que posteriormente tenha sido destinatário de uma procuração formal para exercer a gerência da mesma sociedade.

Assim, é de concluir que a norma que constitui objeto do presente recurso não foi aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, o que implica que não possa dela tomar-se conhecimento.

8. Apreciemos, por fim, a admissibilidade do recurso no que concerne às normas descritas em iv. e v..

Segundo o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º, da Constituição, e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, «identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso» (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98).

Segundo a forma como o recorrente formulou os enunciados iv. e v., o que realmente está em causa não é uma dimensão normativa reportada ao artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, antes a (in)observância, pelo tribunal, do dever de fundamentar as suas decisões, designadamente no caso de ambos os acórdãos recorridos. Daí que o recorrente invoque a violação do artigo 205.º da...

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