Acórdão nº 1123/08.3 TAGRD.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 06 de Outubro de 2010

Magistrado ResponsávelBRÍZIDA MARTINS
Data da Resolução06 de Outubro de 2010
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

I – Relatório.

1.1. Tramitado competente inquérito, em cujo terminus o Ministério Público deduziu a acusação constante de fls. 211 e segs., remetidos os autos a juízo, nos termos e para os efeitos previstos pelos artigos 311.º e segs., do Código de Processo Penal, mostra-se proferido despacho judicial com o teor que passamos a transcrever: “R. e A. como Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.

O Tribunal é absolutamente competente.

Questão prévia: da legitimidade do Ministério Público para a promoção dos autos.

O arguido A vem acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelos artigos 15.º e 148.º/1 do Código Penal, bem como de uma contra-ordenação estradal prevista e punida pelo artigo 82.º/3 e 6 do Código da Estrada.

O arguido D vem acusado apenas pela prática de uma contra-ordenação estradal, prevista e punida pelo artigo 82.º/3 e 6 do Código da Estrada.

O crime de ofensa à integridade física por negligência imputado ao arguido A, nos termos do artigo 148.º/4 do Código Penal, reveste natureza semi-pública – tornando o procedimento criminal dependente de queixa.

Dispõe o artigo 113.º/1 do Código Penal que, «quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».

Analisando a acusação verifica-se que o ofendido, no caso em apreço, foi R, nascido a 30 de Julho de 2000, pessoa que, nas circunstâncias aí descritas, viu a sua integridade física ofendida com um comportamento imputável ao arguido A – sendo ele o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

Sendo o ofendido menor de 16 anos, dispõe o artigo 113.º/4 do Código Penal que «se o ofendido for menor de 16 anos (…), este (direito de queixa) pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas sucessivamente nas alíneas do n.º 2, aplicando-se o disposto no número anterior.

» Os representantes legais do menor, nos termos do artigo 1877.º do Código Civil, são os seus pais, tendo qualquer deles legitimidade para, sozinho e em representação do menor, apresentar queixa – cfr. AcRL de 26/2/2004 (www.dgsi.pt.jtrl 1157/2004-9).

Os pais do menor são D e M (cfr. fls. 5).

Compulsados os autos verifica-se, por um lado, que o pai do menor não apresentou qualquer queixa-crime. Por outro lado, analisando a postura da mãe do menor ao longo do processo, impõe-se concluir que a mesma também não apresentou tempestiva queixa-crime.

Na verdade, analisando o processado, verifica-se que os presentes autos se iniciaram com base numa certidão proveniente dos autos de incumprimento das responsabilidades parentais, que corriam termos, sob o n.º …/06.5 TBSBG, no Tribunal Judicial da Comarca do Sabugal (cfr. fls. 3 a 26), certidão essa que teve subjacente uma promoção da magistrada do Ministério Público da referida comarca com o seguinte teor: “II – Relativamente ao acidente de viação de que o menor foi vítima, se extraia certidão de fls. …e se remeta aos Serviços do Ministério Público da Guarda, para os efeitos tidos por convenientes, designadamente, para averiguar da eventual prática de algum ilícito criminal e infracções estradais, p.p., pelos artigos 82, n.º 3 e 91, n.ºs 1 e 4, ambos do Código da Estrada (o menor à data dos factos tinha sete anos de idade).” Tal certidão contém um requerimento da mãe do menor (cfr. fls. 7), dirigido ao referido processo, entrado no dia 14 de Julho de 2008, no qual a mesma relata o acidente ocorrido (no dia 5 de Julho de 2008), durante um período de visitas ao pai do menor, imputando a responsabilidade pela ocorrência do acidente ao pai do menor, terminando dizendo: “Dada a gravidade da situação, solicito que se apurem os factos com urgência e que o pai não possa levar o Rui consigo até que a situação se encontre devidamente esclarecida.” Interpretando o sentido da declaração, de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia extrair de tal requerimento (cfr. artigo 236.º do Código Civil), dirigido a um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, resulta do mesmo que não foi intenção da mãe apresentar qualquer queixa-crime contra o pai do menor, mas apenas a de relatar o acidente de que o seu filho havia sido vítima, para que, no âmbito do referido processo, se apurassem os factos e se impedisse o pai de voltar a levar o menor consigo até que todos os factos fossem esclarecidos.

Compulsados os autos verifica-se que, recebida tal certidão nos Serviços do Ministério Público desta comarca, tendo sido autuado o processo de inquérito, foi de imediato (no dia 24/10/2008) determinado o arquivamento dos autos, por inexistência de crime (cfr. fls. 26).

O Ministério Público, em despacho proferido no dia 3/11/2008, ponderando que a certidão havia sido remetida para “se averiguar da eventual responsabilidade criminal (ofensa à integridade física por negligência) e/ou contra-ordenacional”, determinou o “reinício” do inquérito e determinou a realização de diversas diligências (cfr. fls. 28).

Em tal despacho, o Ministério Público não deixou consignado porque razão “reiniciava o inquérito”, não tendo ponderado o facto de não ter sido apresentada queixa relativamente ao crime alegadamente indiciado.

O inquérito correu os seus termos até que, no dia 29/5/2009 (cfr. fls. 123), o Ministério Público determinou a inquirição da mãe do menor (a qual até esta data não tinha sido “vista, nem achada” no processo), para que a mesma esclarecesse “se pretende ainda procedimento criminal contra estes arguidos”, diligência que foi realizada no dia 6/7/2009 (cfr. fls. 140), ou seja, um ano e um dia depois da ocorrência dos factos, na qual a mãe do menor referiu que “pretende procedimento criminal contra os arguidos”.

Conclui-se, assim, que, não tendo a mãe do menor formalizado qualquer queixa-crime para dar início ao processo, iniciado o mesmo, a declaração formalizada mais de um ano depois da ocorrência e do conhecimento dos factos, nos termos do artigo 115.º/1 do Código Penal, é irrelevante, por já ter decorrido o prazo (de 6 meses) previsto para exercício tempestivo do direito de queixa – tendo-se extinto, no dizer da lei, o direito de queixa.

Estando em causa um crime de natureza semi-pública, coloca-se a questão de saber se o Ministério Público poderia dar início ao processo independentemente da existência de direito de queixa.

A este propósito, dispõe o artigo 113.º/5-a) do Código Penal que, «quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao procedimento no prazo de seis meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e este for menor (…).» Assim sendo, estando em causa um crime de natureza semi-pública e sendo o ofendido menor, conclui-se que o Ministério Público poderia dar início ao processo, no prazo de 6 meses (a contar da data em que tiver conhecimento do facto e dos seus autores) e independentemente da existência de queixa, se o interesse do ofendido o aconselhasse.

O poder-dever de dar início ao processo reclama, assim, um juízo de ponderação dos interesses do ofendido, devendo o Ministério Público dar início ao processo, independentemente da questão da existência de queixa, sempre que, feita tal ponderação, o interesse do ofendido o aconselhar – juízo este que, conforme tem sido entendido de forma pacífica na doutrina e jurisprudência, é insindicável.

A lei reclama, no entanto, que o processo se inicie com um juízo de ponderação...

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