Acórdão nº 2572/21.7T8FAR.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 25 de Janeiro de 2023
Magistrado Responsável | GRA |
Data da Resolução | 25 de Janeiro de 2023 |
Emissor | Tribunal da Relação de Évora |
Acordam no Tribunal da Relação de Évora: AA propôs contra BB acção declarativa de condenação.
Alegou, em síntese, que: no dia 6.1.20, a autora comprometeu-se a comprar e a ré comprometeu-se a vender-lhe determinada fracção autónoma; como sinal e princípio de pagamento do preço de 270.000,00€, a autora entregou à ré a quantia de 10.000,00€; a escritura seria realizada até ao dia 31 de Março, mediante marcação da autora; no dia 6.1.20, a autora tinha uma situação profissional e financeira estável, que lhe permitia recorrer a empréstimo bancária para pagar o remanescente do preço; mercê da pandemia, a autora ficou abrangida pelo regime de lay-off, passando da retribuição líquida de 2.069,32€ para a retribuição líquida de 574,92€; por carta de 18.4.20, a autora resolveu o contrato-promessa por alteração anormal e superveniente das circunstâncias e pediu a devolução do sinal prestado; o que a ré não aceitou. A autora concluiu, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato-promessa e a ré condenada a devolver-lhe a quantia de 10.000,00€, acrescida de juros de mora desde a data da resolução.
A ré contestou, defendendo que o caso não é subsumível à situação prevista no artigo 437º do Cód. Civ. e que, ainda que o fosse, a autora incumpriu definitivamente o contrato quando deixou de marcar a escritura de compra e venda até final de Março de 2020. Concluiu pela sua absolvição do pedido.
No âmbito da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido.
A autora interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões: 1.ª Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, o qual decidiu julgar totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, decidiu absolver a recorrida BB do pedido contra esta deduzido; 2.ª Entende a recorrente que o Tribunal deveria ter levado ao elenco dos factos provados outros pontos da factualidade alegada pela recorrente na sua petição inicial, impondo-se, nessa medida, recorrer da matéria de facto; 3.ª Por se verificar, atento o teor da sentença sob recurso, que se trata de factualidade relevante para a boa decisão do litígio sub judice, entende a recorrente que a factualidade alegada nos artigos 75.º, 76.º, 77.º, e 78.º da petição inicial, deverá ser julgada provada e, nessa medida, integrar o elenco dos factos provados; 4.ª Com efeito, como se trata de factualidade pública e notória, a situação de crise pandémica que se viveu desde o início do ano de 2020 implicou uma radical alteração em todos os 39 quadrantes da vida de todos os cidadãos do globo, no que se incluíram, naturalmente, os serviços públicos; 5.ª Mais ainda, ao contrário daquele que parece ser o entendimento do tribunal a quo, essas alterações, no que concerne ao território nacional, não se começaram a sentir apenas a partir da primeira declaração de estado de emergência; 6.ª Na verdade, como não pode desconhecer este Venerando Tribunal, por se tratarem de factos públicos e notórios, os efeitos da pandemia mundial começaram a sentir-se em Portugal desde o início do mês de março de 2020, mais concretamente, desde o dia 02 de março de 2020, dia em que foram diagnosticados os dois primeiros casos de pessoas infetadas com Covid-19 em Portugal; 7.ª Nessa mesma data foi publicado o Despacho n.º 2836-A/2020, de 02 de março que determinou que os empregadores públicos elaborassem planos de contingência, e recomendou o recurso ao teletrabalho, o qual apenas deveria ser afastado por razões imperiosas de interesse público e recomendou, ainda, que se equacionasse a redução ou suspensão do período de atendimento; 8.ª Como também é do conhecimento público, durante o mês de março de 2020, os acontecimentos ditados pela evolução pandémica foram rápidos e totalmente imprevisíveis, tendo-se vivido tempos de absoluta incerteza na qual a realidade se encontrava sujeita a alterações diárias; 9.ª No que diz respeito aos serviços públicos, e ainda em momento prévio ao primeiro confinamento geral, verificaram-se variadíssimas situações de encerramento de serviços, por serem diagnosticados casos de Covid-19, nos quais se incluíram tribunais, câmaras municipais, conservatórias e, naturalmente, notários e lojas de cidadão; 10.ª A 10 de março de 2020, o Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e do Notariado (STRN) pedia à ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, o encerramento das Lojas do Cidadão por todo o país; 11.ª A 13 de março de 2020, foi publicado o Decreto-lei n.º 10-A/2020, estabelecendo medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia, prevendo-se que no caso de encerramento de instalações onde devam ser praticados atos processuais ou procedimentais no âmbito de processos e procedimentos regulados pelo Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, e demais legislação administrativa, ou de suspensão de atendimento presencial nessas instalações, por decisão de autoridade pública com fundamento no risco de contágio do COVID-19, considera-se suspenso o prazo para a prática do ato processual ou procedimental em causa a partir do dia do encerramento ou da suspensão do atendimento; 12.ª A 15 de março de 2020, foi publicado o Despacho n.º 3301-C/2020, determinando medidas de caráter extraordinário, temporário e transitório, ao nível dos serviços de atendimento aos cidadãos e empresas, designadamente impondo que o atendimento presencial ao público com fins não informativos fosse efetuado através de pré-agendamento, ficando, em regra, limitado aos serviços que não podem ser prestados por via eletrónica e aos atos qualificados como urgentes; 13.ª A 18 de março de 2020, dia em que foi declarado o primeiro estado de emergência, o Bastonário da Ordem dos Notários referia em entrevista ao jornal online Idealista que “Solicitámos a todos os notários que adiassem todas as diligências que estivessem marcadas, porque seria um risco continuarmos a ter movimentações de pessoas para os cartórios em processos que têm natureza urgente e que foram classificados pela Ordem como os testamentos e atos em que os outorgantes estejam em perigo de vida, e que solicitassem aos seus clientes que se abstivessem e adiassem todos os demais negócios jurídicos que tivessem de ser formalizados e não sejam urgentes.”; 14.ª Tendo sido publicado o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, que determinou o dever geral de recolhimento domiciliário de todos os portugueses a partir das 00h00 do dia 22 de março de 2020; 15.ª A partir dessa data, os serviços de Registo e Notariado, os que não se encontravam encerrados, assumiram como prioridade a celebração de atos urgentes; 16.ª A 02 de abril de 2020 foi publicado o Decreto do Presidente da República n.º 17.º-A/2020, que renovou o estado de emergência e foi publicado o Decreto n.º 17.º-A/2020 que procedeu à regulamentação do estado de emergência, para além as restrições já implementadas, impôs limites à circulação durante o período da Páscoa, proibindo a circulação de pessoas para fora do concelho de residência habitual e proibindo os voos comerciais de passageiros de e para os aeroportos nacionais e estabeleceu a obrigatoriedade do regime de teletrabalho; 17.ª A 17 de abril foi publicado o Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, que procedeu à segunda renovação da declaração do estado de emergência e o Decreto n.º 2-C/2020, que procedeu à sua regulamentação, mantendo o dever geral de recolhimento; 18.ª Assim, quanto à factualidade alegada nos artigos 75.º a 78.º da petição inicial, terá que concluir-se que se tratam estes de factos públicos e notórios, não carecendo de alegação nem de prova, como preceitua o artigo 412.º, número 1., do Código de Processo Civil, devendo ser devidamente valorada pelo tribunal; 19.ª Não obstante, encontram-se suficientemente provados pelo documento a que se faz referência no artigo 76.º do articulado, designadamente a notícia de imprensa publicada no idealista/news, disponível em https://www.idealista.pt/news; 20.ª Pelo exposto, deverá a factualidade alegada nos artigos 75.º a 78.º da petição inicial ser julgada provada, passando a incluir-se no elenco dos factos provados; 21.ª Ora, face à factualidade julgada provada, entende a recorrente que as normas legais aplicáveis impõem, necessariamente, decisão diversa da proferida; 22.ª Discorda-se da sentença, em especial, quanto a dois pontos fundamentais para a decisão da causa: a) Que à data da resolução do contrato-promessa se verificasse uma situação de mora imputável à recorrente; e b) Que à data da resolução do contrato-promessa não se verificasse uma alteração das circunstâncias que, de acordo com o princípio da boa-fé, justificasse a resolução do contrato; 23.ª No contrato-promessa sub judice, como decorre da matéria de facto provada, as partes convencionaram, para além do mais, que a escritura pública de compra e venda do imóvel seria outorgada até ao dia 31 de março de 2020 (vide cláusula 4.ª, do contrato-promessa celebrado entre as partes e junto à petição inicial como documento número 1.), e que a marcação da escritura pública de compra e venda, no prazo estipulado, ficaria a cargo da recorrente; 24.ª Ora, nos termos do artigo 804.º, número 2., do Código Civil, o devedor apenas pode considerar-se constituído em mora quando a não realização da prestação no tempo devido decorra de causa que lhe seja imputável; 25.ª Assim, a recorrente apenas poderia considerar-se constituída em mora se pudesse concluir-se que a não marcação da escritura para a celebração do contrato definitivo no prazo estabelecido no contrato-promessa se deveu a causa que lhe fosse imputável; 26.ª Porém, não pode entender-se que assim seja; 27.ª Como se referiu supra, e como os Venerandos Desembargadores, colocados na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas...
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