Acórdão nº 860/22 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução21 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 860/2022

Processo n.º 597/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida a Câmara Municipal do Nordeste, o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do despacho proferido pelo Juiz de Instrução que «desaplicou por julgar «inconstitucional a norma ínsita no art. 40º/2, por referência, conjugadamente, ao nº 1/-a) do mesmo preceito e aos arts. 17º e 268º/1/f), todos do CPP, na interpretação de que a decisão do JIC sobre a constituição de assistente, proferida em sede de inquérito, determina o seu impedimento para a intervenção na instrução, por violação do princípio do juiz natural (art. 32º/9 da CRP) desproporcionalmente comprimido (art. 18º/2 da CRP) pelo legislador ordinário”».

2. É o seguinte o teor da decisão recorrida:

«I.

Os presentes autos foram distribuídos, como processo de instrução, a este Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, do qual sou titular.

Proferi o despacho de 04.04.2022, pelo qual admiti o ofendido a intervir nos autos na qualidade de assistente (Ref CITIUS nº 53095995, a fls. 615 do suporte físico dos autos).

Cumpre aferir, pois, se na decorrência da prática daquele ato processual estou impedido de intervir na instrução à luz do disposto no art. 40º/1/a) e 2 do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro, em vigor desde o passado dia 21.03.2022 (cfr. o art. 16º do diploma), e de aplicação imediata (art. 5º/1 do CPP).

A resposta, na minha perspetiva, resultará da escalpeiização das duas seguintes e sequenciais questões: a norma deve ser interpretada no sentido de que a prática do ato em questão (admissão de constituição de assistente) determina tal impedimento? na afirmativa, a norma deve ser desaplicada por motivo de inconstitucionalidade material?

Vejamos.

II.

Como é por todos sabido, mas não é irrelevante sublinhá-lo, o legislador do novel "pacote anticorrupção", à margem (aparentemente) das respetivas finalidades, produziu alterações de monta no regime processual penal dos impedimentos de juiz, introduzindo no art. 40º do CPP, no que ao caso importa, o novo nº 2, que dispõe o seguinte: "Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior". Trata-se, desde logo, de um regime inovatório para o juiz de instrução criminal (JIC) qua tale que, até então, na vigência do corpo único do preceito na redação anterior, não era capeado por qualquer impedimento legal concernente a participação a montante no processo (questão diversa, salvaguardo, do regime geral do impedimento previsto no antecedente art. 39º do CPP). Ora, sem prejuízo da bondade legislativa subjacente à intenção da alteração, e correspondente resultado em letra de lei, certo é que a questão supra enunciada não se colocaria caso o legislador houvesse mantido inalterada a redação da al. a) do nº 1 do artigo, ou, alterando-a, não houvesse fixado uma cega remissão para a prática, ordem ou autorização dos atos previstos nos arts. 268º/1 ou 269º/1, ambos do CPP. Com efeito, o atual art. 40º/1/ a) do CPP prevê o impedimento do juiz que tiver "Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º". E, no que ao caso interessa, o despacho que versa sobre a constituição de assistente, durante o inquérito ou a instrução, consubstancia um ato processual expressamente reservado ao JIC (arts. 17º e 268º/1/f), ambos do CPP). Tal arquitetura normativa determina, pois, que o despacho proferido pelo JIC que decida acerca da constituição de assistente no inquérito ou na instrução, admitindo-a ou não, gera o seu impedimento para intervir nesta fase processual facultativa.

Mas será admissível uma interpretação restritiva das normas, no sentido de cingir o impedimento do JIC à prática, ordem ou autorização (não de todos, mas sim) de (só) parte dos atos previsto nos cit. preceitos para os quais o nº 1/ a) remete? A resposta é negativa: na verdade, no plano da literalidade, as normas são claras, simples e objetivas, não oferecendo dúvidas interpretativas na abrangência de toda a panóplia dos atos processuais ali previstos; por seu turno, o diploma legal é omisso quanto à exposição de motivos que fornecesse qualquer iluminação naquele sentido, não encontrando esta alteração, sequer, qualquer arrimo no sumário ["Aprova medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção (...)"], omissão esta que já vinha do texto da Proposta de Lei nº 90/XIV e do Projeto de Lei nº 876/XIV que a antecederam; por outro lado, estando o regime dos mpedimentos umbilicalmente ligado à imparcialidade do juiz e, nesta medida, com a desconfiança que a intervenção do juiz pode gerar na comunidade, não é de estranhar a pretensão do legislador de dezembro de 2021 (em final de legislatura), na contextura do mediatismo dos proclamados megaprocessos, em cindir radicalmente a intervenção, no processo, do JIC enquanto juiz das liberdades e do JIC enquanto titular da instrução, de modo a assegurar, aos olhos do povo e na senda de um juiz casto, a ausência de (insanável) contaminação por motivo de outra intervenção no processo. Concorde-se ou não esta foi a opção legislativa.

III.

Aqui chegados, resta aferir se tal norma vertida no nº 2 do art. 40º do CPP, na sobredita interpretação de que o impedimento se verifica pela subsunção do ato processual em causa à previsão, por remissão, do nº 1/ a) (reitero: a única interpretação que me parece possível), está ferida do vício de inconstitucionalidade por violação do princípio do juiz natural ínsito nos arts. 32.º/9 e 203º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Isto porque, como perspicazmente sintetiza Pedro Soares de Albergaria, "(...) um impedimento implica sempre um desvio à regra da competência legalmente pré-determinada, desvio esse que há de assentar em considerações materiais-axiológicas de valia constitucional (a tutela da imparcialidade) (...)" ["Os impedimentos entre a imparcialidade do juiz e funcionalidade do sistema. Notas sobre a recente alteração do art. 40º CPP", Julgar Online, março de 2022, p. 16, integralmente disponível em http://julgar.pt].

Sendo despiciendas, para o caso, quaisquer prolixas considerações acerca da tutela constitucional de tal princípio, não posso deixar de referenciar a correspondente abrangência, quer na sua dimensão positiva, à definição dos concretos juízes que compõem a formação judicial interveniente, quer na sua dimensão negativa, consistente na proibição de afastamento das regras conducentes a um tribunal (ou um juiz) ad hoc. Isto porque o princípio do juiz natural é corolário (e garantia) do princípio da independência dos tribunais perante o poder político, visando salvaguardar qualquer determinação ou proibição de competência de exceção de um determinado tribunal para uma certa causa [cfr. Miguel Nogueira de Brito, "O Princípio do Juiz Natural e a Nova Organização JudiciáriaRevista Julgar, nº 20, Coimbra, p. 21 e ss. e a vasta jurisprudência ali referenciada].

Por seu turno, espelhando tal princípio, incontestavelmente, um direito fundamental, somente poderá ser restringido, sempre de fonna exigível ou necessária, adequada e proporcional, em prol e na justa medida da salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º/2 e 3 da CRP). E, como bem referem Gomes Canotilho e Vital Moreira a este respeito, para que a restrição do direito fundamental seja constitucionalmente legítima, torna-se necessária a verificação cumulativa das seguintes condições ou pressupostos de ordem material: "(a) que a restrição esteja expressamente admitida (ou, eventualmente, imposta) pela Constituição, ela mesma (nº 2, 1ª parte); (b) que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (nº 2, in fine); (c) que a restrição seja exigida por essa salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objetivo (nº 2, 2ª parte); (d) que a restrição não aniquile o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respetivo preceito (nº 3, in fine)" ["Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol.. I", 4º Ed., Coimbra, 2007, em anotação ao art. 18º, p. 390]. Ademais, atenta a especificidade de a garantia do juiz legal ou natural ter "um âmbito de proteção que é, em larga medida, configurado ou conformado normativamente" (Ac. TC nº 614/2003), torna especialmente crítica "a distinção entre o plano da conformação do direito pelo legislador e o plano das restrições desse mesmo direito" [Miguel Nogueira de Brito, ob. cit., p. 29].

Tendo presente este pano de fundo, e considerando que, indubitavelmente, o novo regime de impedimentos do JIC configura uma restrição do exercício das suas funções na fase da instrução que lhe empresta a designação (art. 119º/1 da Lei nº 62/2003, de 26 de agosto) e, com isto, uma compressão do princípio do juiz natural, resta saber se encontra justificação no cotejo com a "tutela da imparcialidade endoprocessual" [Pedro Soares de Albergaria, ob. cit., p. 6] enquanto condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração da justiça.

Ora, no que à questão releva, não consigo encontrar dignidade constitucional, inscrita na (pretensa) salvaguarda da imparcialidade, quanto à decisão sobre a constituição de assistente, que permita, então, justificar a compressão do princípio do juiz natural sito no polo oposto da equação, barrando a sua intervenção na instrução, e, concomitantemente, fazendo intervir o juiz substituto em lugar do juiz impedido.

De...

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