Acórdão nº 731/22 de Tribunal Constitucional (Port, 03 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução03 de Novembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 731/2022

Processo n.º 822/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 4 de janeiro (Lei do Tribunal Constitucional [LTC]).

2. Através da Decisão Sumária n.º 576/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:

«5. O recorrente identifica, como objeto do recurso, «a norma ínsita no artigo 613.º, n.º 1 do Código de Processo Civil no sentido de que o alegado esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal a quo é uma circunstância que deverá sobrepor-se aos mais elementares direitos fundamentais do Recorrente, bem como aos princípios basilares do Estado de Direito Democrático, impedindo o Tribunal o quo de apreciar uma questão que não é sequer passível de alterar a decisão já proferida, mas tão só adequada a suspender o processo no estado em que se encontrava no momento do requerimento - requerimento esse que foi decidido com base em pressupostos que o próprio Tribunal o quo veio a julgar como falsos - é manifestamente inconstitucional por violação dos princípios dos artigos 2.º, 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa».

Considerando o modo como o recorrente delineou o objeto do recurso, mostra-se claro que não se encontra enunciada qualquer questão normativa, idónea a controlo de constitucionalidade ou da legalidade. Com efeito, o que o recorrente pretende discutir é o próprio julgamento do tribunal a quo, dirigindo uma censura à própria decisão judicial por ter adotado uma interpretação do direito infraconstitucional diferente da que reputa correta. Com efeito, sustenta o recorrente que «andou mal o Tribunal a quo ao ter decidido não conhecer do mérito da questão colocada pelo Recorrente escudando-se no pretenso esgotamento do seu poder jurisdicional»; que «esta é uma decisão que, em si mesma, traduz uma negação do acesso à Justiça e à tutela efetiva dos direitos do Recorrente que não pode ser aceite nem reconhecida num Estado de Direito Democrático»; e que «A referida norma terá de ser interpretada no sentido de não abarcar no esgotamento do poder jurisdicional, exigido como pressuposto para que possa ser apreciado o requerido, situações em que o pedido formulado não exerce qualquer influência, quer quanto ao seu teor decisório, quer quanto aos seus fundamentos, na sentença proferida pelo Tribunal».

Verdadeiramente, o recorrente não pretende sindicar qualquer norma, mas o acerto da decisão do tribunal a quo. O que é especialmente evidente quando sustenta que «o número 1 do artigo 613.º do Código de Processo Civil impede uma interpretação como aquela acolhida pelo Douto Tribunal de Primeira Instância e secundada pela decisão ora reclamada, impondo-se a tomada de decisão distinta e a apreciação e aceitação do requerido de forma que seja declarada a nulidade do despacho proferido em 15 de junho de 2020», que «o entendimento sufragado pelo Douto Tribunal de Primeira Instância no que respeita à interpretação que faz da norma do Código de Processo Civil traduz-se, ademais, num juízo desproporcional e desequilibrado quando considerados os direitos em presença: compactuar com a recusa da apreciação da nulidade requerida pelo Arguido (sobretudo considerando que se trata de uma decisão que recusou apreciar determinada questão com base num fundamento que esse mesmo Tribunal veio, dois anos depois, julgar como falso) por oposição à defesa de uma indefinida e inócua segurança jurídica (que impediria a apreciação da questão requerida) que, no caso concreto, não sai beliscada com a aceitação da apreciação do requerido pelo Recorrente» e que «não será constitucionalmente admissível - pois constituirá violação expressa do direito fundamental do Recorrente ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa - que se admita que um tribunal se furte a apreciar o fundamento e o mérito de um requerimento apresentado - em tempo - por um arguido, fundamentando tal recusa numa questão processual como a do trânsito em julgado da decisão e que, anos depois, venha corrigir a circunstância que determinou a não apreciação do pedido».

Ao envolver as concretas circunstâncias do seu caso e ao mobilizar argumentos interpretativos inferidos do direito infraconstitucional, mostra-se claro que o objeto do recurso não é qualquer norma, abstratamente formulada e suscetível de aplicação genérica, mas o acerto da interpretação dada pelo tribunal a quo ao disposto no n.º 1 do artigo 613.º do Código de Processo Civil.

Ora, o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar o mérito ou a bondade das próprias decisões recorridas, nomeadamente quanto à discussão jurídica em matéria de direito e à melhor interpretação a dar às normas legais ordinárias, sendo essa matéria reservada aos outros tribunais. Nos processos de fiscalização concreta, o juízo do Tribunal incide antes sobre normas jurídicas que hajam sido ratio decidendi daquele aresto, «identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objeto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objeto de tal recurso» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 361/98). No âmbito do recurso de constitucionalidade cabe apenas o escrutínio da constitucionalidade de normas e não de quaisquer outras operações, designadamente o modo como o tribunal recorrido interpretou ou aplicou o direito infraconstitucional ou ponderou os elementos probatórios trazidos aos autos.

Nessa medida, não tendo o presente recurso como objeto uma norma ou certa interpretação normativa, não poderia nunca ser admitido.

6. Sempre se dirá, em qualquer caso, que ainda que pudesse atribuir-se ao recurso um objeto normativo, nem assim se poderia tomar dele conhecimento. Desde logo porque, e sem prejuízo de se não verificarem outros pressupostos de admissibilidade, a decisão ora recorrida não aplicou, enquanto ratio decidendi, a «norma ínsita no artigo 613.º, n.º 1 do Código de Processo Civil no sentido de que o alegado esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal a quo é uma circunstância que deverá sobrepor-se aos mais elementares direitos fundamentais do Recorrente, bem como aos princípios basilares do Estado de Direito Democrático, impedindo o Tribunal o quo de apreciar uma questão que não é sequer passível de alterar a decisão já proferida, mas tão só adequada a suspender o processo no estado em que se encontrava no momento do requerimento - requerimento esse que foi decidido com base em pressupostos que o próprio Tribunal o quo veio a julgar como falsos». Não existe correspondência entre a norma que o recorrente quer ver sindicada e aquela que foi efetivamente aplicada na decisão recorrida, a implicar que — atenta a instrumentalidade dos recursos de constitucionalidade — o acórdão ora impugnado sempre se mantivesse intocado ainda que fosse julgada a inconstitucionalidade da norma que constitui o objeto do recurso.

Para que tal “norma” houvesse constituído a ratio decidendi do acórdão ora impugnado, impor-se-ia que o tribunal a quo houvesse concluído assistir razão ao ora recorrente — e estarem em causa os seus «mais elementares direitos fundamentais» — mas sobrepor-se a tal circunstância o esgotamento do poder jurisdicional. Sucede que, inversamente, o tribunal a quo, não decidiu preterir os direitos fundamentais do recorrente, determinando simplesmente que «proferida a decisão, fica extinto o poder jurisdicional relativamente às questões sobre as quais incidiu a decisão, estando vedada ao juiz a possibilidade de "dar o dito por não dito", arrepender-se da decisão, mudar de ideias, alterar / modificar a decisão proferida». Em momento algum o tribunal a quo aplicou, sequer indiretamente, a norma segundo a qual o princípio do esgotamento do poder jurisdicional prevalece sobre direitos fundamentais do arguido.

Não tendo a norma sindicada constituído ratio decidendi do acórdão ora recorrido, não poderia nunca o Tribunal Constitucional conhecer da respetiva conformidade constitucional, nos termos do disposto no artigo 79.º-C da LTC. O que se compreende, já que o recurso ficaria ferido de inutilidade: um eventual julgamento da inconstitucionalidade daquela norma não geraria a modificação da decisão impugnada, por se conservarem intactos os fundamentos normativos que a motivaram (n.º 2 do artigo 80.º da LTC)».

3. Inconformado com tal decisão, o recorrente reclamou para a conferência, nos seguintes termos:

« I. Dos fundamentos da decisão sumária

Na decisão sumária sub Júdice, o Colendo Juiz Conselheiro Relator entendeu não estarem verificados os requisitos de admissibilidade de um recurso interposto para o Tribunal Constitucional, entendendo não ser possível a sua apreciação de mérito.

Se bem se entende a decisão sumária proferida, esta assentou em duas ordens de razão:

i) não se encontrar enunciada qualquer questão normativa idónea a controlo de

constitucionalidade ou de legalidade; e

ii) ainda que se pudesse atribuir ao recurso um objeto normativo, nem assim se

poderia tomar dele conhecimento visto não existir correspondência entre a norma que o recorrente quer ver sindicada e aquela que foi efetivamente aplicada na decisão recorrida, motivo pelo qual o acórdão ora impugnado sempre se manteria intocado ainda que fosse julgada a inconstitucionalidade da norma que constitui o objeto do recurso.

Ora, com o devido...

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