Acórdão nº 740/22 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Novembro de 2022

Data04 Novembro 2022
Órgãohttp://vlex.com/desc1/2000_01,Tribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 740/2022

Processo n.º 616/22

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

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Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. A., Lda. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82 de 15.11 (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2022, que indeferiu a reclamação de nulidade apresentada pela recorrente, arguindo como fundamento a omissão de pronúncia e por o aresto “adotar uma interpretação inconstitucional da alínea e), do n.º 1, do art. 449.º do Código de Processo Penal, não compatível com o previsto nos artigos 2.º, 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 23.º da Constituição da República Portuguesa”. A recorrente suscita ainda a violação da garantia de uma tutela jurisdicional efetiva e de um processo equitativo, conforme os números 1 e 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, das garantias de defesa e do direito ao recurso tal como consagrados no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa”.

2. Por sentença transitada em julgado em 10 de setembro de 2016, A., Lda. foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal agravado, p. p. pelos artigos 2.º, 7.º e 105.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, todos do Regime Geral das Infrações Tributárias.

A recorrente interpôs recurso extraordinário de revisão ao abrigo do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, que foi negada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de abril de 2022.

A arguida apresentou então reclamação contra este acórdão, apontando-lhe nulidade por omissão de pronúncia e por ter adotado uma interpretação inconstitucional do disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP, que foi indeferida pelo acórdão de 19 de maio de 2022, como acima relatado.

3. Ainda inconformada, a recorrente interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, nos termos supra relatados.

Pela decisão sumária n.º 445/2022, decidiu-se não conhecer do mérito do recurso. Os fundamentos foram os seguintes, para o que ora nos importa:

“(…) no requerimento de interposição de recurso a recorrente não coloca um pedido de fiscalização de uma norma ou interpretação normativa, na aceção supra exposta, antes peticiona por que o Tribunal Constitucional acolha e imponha ao Supremo Tribunal de Justiça certa forma de interpretar o disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP.

Em essência, a recorrente entende que este dispositivo legal deve ser interpretado como permitindo a revisão extraordinária da sentença condenatória quando o condenado, depois do trânsito em julgado, se vem a aperceber que existe um entendimento jurídico que permitiria apontar nulidade a um conjunto de meios de prova essenciais para a condenação. O termo “descobrir” constante do preceito (“se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas”), no ver da recorrente deve ser entendido neste sentido, como o «tomar consciência de», de um prisma estritamente subjetivo e não em função de condições objetivas que envolvessem o processo.

É neste contexto e para emprestar força persuasiva ao seu argumento que a recorrente faz apelo ao disposto nos artigos 2.º, 20.º, n.º 1 e 5 e 32.º, todos da Constituição da República Portuguesa, que, a seu ver, aconselham (ou impõem) a interpretação que dirige ao artigo 449.º, n.º 1, alínea e) do CPP, reclamando, pois, pela autoridade de fonte normativa de valor superior:

«O uso do verbo "descobrir" no corpo da norma prevista no artigo 449.º, número 1, alínea e) do Código de Processo Penal não poderá estar apenas reservado, sob pena de inconstitucionalidade por violação dos artigos 2.º, 20.º, número 1 e 5 e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, a questões objetivas de facto ou a alterações legislativas.

A referida norma terá que ser interpretada no sentido de abarcar no conceito de «descoberta», exigido como fundamento para o recurso de revisão de que a Recorrente aqui lança mão, a tomada de consciência da ilicitude que leva a concluir estar-se diante de prova proibida nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 126.º do Código de Processo Penal .

Desconsiderou este insigne Tribunal a interpretação do termo «descoberta» no sentido de tomada de consciência, não se pronunciando quanto a esta matéria, reduzindo o seu julgamento à interpretação do termo reconduzida à descoberta no sentido fáctico e objetivo para afirmar que o Tribunal e a Recorrente tinham conhecimento das circunstâncias de facto em que foi obtida a prova que se revela evidentemente proibida à data do julgamento.

É sim a efetiva perceção e tomada de consciência, pela Arguida, de que as provas que sustentaram a sua condenação são nulas e não poderiam ter utilizadas para fundar a sua condenação que preenchem o conceito "descobrirJ/ plasmado na norma ínsita no artigo 449.º, número 1, alínea e) do Código de Processo Penai . Não estando tai descoberta apenas reservada a elementos fáticos objetivos ou sequer a alterações legislativas.

(...) a alínea e) do número 1 do artigo 449º do Código de Processo Penai impede uma interpretação como aquela acolhida pelo Douto tribunal de primeira instância (...) [e] solução distinta contenderia frontalmente com os direitos que, pela Constituição, são reconhecidos e atribuídos à ora Recorrente, nomeadamente no que concerne ao direito de ação judicial, bem como, à garantia de que são asseguradas todas as regras de um processo justo e equitativo.»

A recorrente insurge-se, está bom de ver, não contra um quadro legal ou programa normativo, mas contra a própria decisão, que entende ter incorrido em erro na interpretação jurídica do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP e que não aplicou devidamente o respetivo programa normativo. Pretende-se, pois e nesse seguimento, que a decisão seja revista pela mediação do sistema jurídico processual-penal – cuja compaginação para com a Constituição ou lei de valor reforçado não discute –, tudo tendo em vista obter uma orientação e resultado que entenderá mais conformes com os princípios constitucionais que menciona.

Estamos, está bom de ver, perante matéria excluída dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, em que, já resulta do que ficou dito, não se compreende o controlo da legalidade das decisões ou escolher a melhor interpretação de Direito (v., C. LOPES DO REGO, op. cit., p. 166; também acórdãos do TC n.º 78/09 e 604/99, aí citados).

Concluímos já, sendo assim, que não se acha formulado um pedido de fiscalização da compaginação de um ato normativo para com princípios ou normas constitucionais, mas, apenas e somente, um impulso impugnatório que realiza uma abordagem ao Tribunal Constitucional como se se tratasse de uma instância integrada na jurisdição criminal e que possuísse no seu leque de atribuições e competências a revisão de decisões de outros órgãos jurisdicionais: o objeto do recurso interposto é por isso inidóneo, face à ausência de carácter normativo, o que, por si só, impede a respetiva apreciação de mérito.

Por outro lado, cabe sublinhar que, como acima se relatou, a recorrente interpôs recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2022 que indeferiu a reclamação de nulidade, não do acórdão do mesmo Tribunal, datado de 28 de abril de 2022, que negou a revista extraordinária por entender não-verificados os elementos de que depende a sua admissibilidade ao abrigo do artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP.

É de notar que a recorrente deixou expresso no requerimento de interposição de recurso que « tendo sido notificada do acórdão a fls. (...), nos termos do qual se indeferiu o requerido, e porque com ele não se conforma, vem do mesmo interpor Recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 70.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional» (sublinhado nosso).

Se dúvidas houvesse, um pouco mais adiante repete a requerida que é o acórdão que indeferiu a reclamação de nulidade que é o alvo da sua inconformação: «A ora Recorrente foi então notificada, no passado dia 20 de maio, do acórdão da 5.ª Secção deste Venerando Tribunal, onde se acordou que a arguição daquela é manifestamente improcedente, visto o acórdão sob censura enunciar de modo claro e suficiente as razões pelas quais o Tribunal entendeu que não está preenchido o requisito ínsito na alínea e), do número 1, do artigo 449.º do Código de Processo Penal (...) Não pode, porém, a Recorrente conformar-se com tal decisão.».

A formalização do requerimento de interposição nestes termos, pois, vincula este Tribunal Constitucional, que no pressuposto de que é essa a decisão recorrida deve aferir da reunião dos pressupostos processuais para a regularidade da instância de recurso de fiscalização concreta.

Ora, como já dissemos, a questão de constitucionalidade a que a recorrente alude no seu requerimento de interposição respeita às condições de admissibilidade do recurso de revisão extraordinária, ex vi artigo 449.º, n.º 1, alínea e), do CPP. Esta norma, porém, não pode entender-se constituir suporte, essencial ou acessória, da decisão de que se interpôs recurso.

Em boa verdade, em face do objeto do incidente suscitado que apreciava, o Supremo Tribunal de Justiça limitou-se a rejeitar a imputação de que o acórdão reclamado incorrera em omissão de pronúncia pelo acórdão recorrido, afastando a invalidação da decisão com fundamento no disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), 1.ª parte, ex vi artigo 425.º, n.º 4, ambos do CPP.

No mais, o Tribunal limitou-se a concluir que, em face do catálogo de vícios da sentença que importam a sua nulidade (artigo 379.º, n.º 1, ex vi artigo 425.º, n.º 4, ambos do CPP), mesmo que o acórdão reclamado...

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