Acórdão nº 619/22 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução22 de Setembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 619/2022

Processo n.º 375/20

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures (Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte), foi interposto pelo Ministério Público recurso de constitucionalidade obrigatório ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal, em ação penal sob processo sumário, em 21 de abril de 2020.

2. No que releva para o presente caso, a decisão recorrida recusou a aplicação da dimensão normativa resultante do previsto no artigo 46.º, n.º 7, do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril, da Presidência do Conselho de Ministros, segundo a qual a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho. O Tribunal a quo entendeu que tal dimensão normativa contraria os comandos dos artigos 29.º, n.º 1 e 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição da República Portuguesa.

Com isso, aquele juízo determinou a desaplicação, com base em inconstitucionalidade, da dimensão normativa explicitada e condenou o arguido pela prática de um crime de desobediência previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do CP.

Para fins de clareza processual, pode ler-se na decisão recorrida:

«O Ministério Publico deduziu acusação contra A., imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência agravada, nos termos dos artigos 348.º, n.º 1, alínea b) do CP, com referência aos artigos 5.º e 46.º, n.º 1, alínea c) e d), e n.º 7, do Decreto 2-C/2020, de 17/04 […] e da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, e 6.º, n.º 1 e 4, da Lei n.º 27/2006 de 3 de julho.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo, o arguido não apresentou contestação nem arrolou testemunhas.

Questão prévia:

Vem o arguido acusado pelo Ministério Público pela prática de um crime de desobediência, na sua forma agravada, por referência ao disposto no artigo 46.º, n.º 7, do Decreto 2-C/2020, de 17/04, que remete para o disposto na Lei n.º 27/2006 de 3 de julho, artigo e 6.º, n.º 1 e 4.

Ora, estabelece o referido preceito legal que “a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho”.

Ora, no entender deste Tribunal, o referido preceito legal encontra-se ferido de inconstitucionalidade formal e orgânica, uma vez que de forma totalmente inovatória previu, pela a forma de Decreto do Conselho de Ministros, e sem autorização legislativa da Assembleia da República, a agravação de consequências jurídico-penais previstas no CP.

É certo que, no que respeita a este preceito, o mesmo remete para a Lei n.º 27/2006, de 3 de julho – que é a Lei de Bases da Proteção Civil. Todavia, a agravação em causa, apesar de tal remissão, não deixa de ser inovadora, porquanto resulta, como o referido preceito já citado deixa claro, da violação do Decreto 2-C/2020, e não daquele referido diploma, a Lei de Bases da Proteção Civil.

Assim (…), entende-se, salvo melhor opinião, que o Governo excedeu os poderes administrativos que no momento revestia, para se confundir, de forma ilegítima, com as vestes do legislador, fora, portanto, da sua competência legislativa, prevista no artigo 198.º da CRP.

Pelo exposto, o tribunal decide desaplicar a norma prevista no artigo 46.º, n.º 7, do Decreto 2-C/2020, de 17/04, face à sua inconstitucionalidade orgânica e formal, por violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea c) e 29.º, n.º 1 da CRP e, nessa medida, considerar apenas a imputação, ao arguido, de um crime de desobediência previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do CP».

3. Perante esta decisão, a representante do Ministério Público junto do Tribunal a quo veio apresentar requerimento de interposição de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (fls. 26), que foi admitido (fls. 27). Nesta sequência, subidos os autos e verificando-se que se encontravam preenchidos os pressupostos processuais, as partes foram notificadas para apresentar as suas alegações.

4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações, postulando pela inconstitucionalidade da norma e, assim, pela improcedência do recurso, no seguinte sentido (fls. 86-101):

«Conclusões

40. O Ministério Público interpôs, em 28 de Abril de 2020, a fls. 26 dos autos supra-epigrafados, recurso obrigatório, para este Tribunal Constitucional, do teor da douta decisão judicial de fls. 22 a 23, em conjugação com fls. 72 a 75, proferida pelo Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures - Juiz 1, do Tribunal judicial da Comarca de Lisboa Norte - Processo n.° 254/20.6PGLRS, "(...) nos termos do disposto nos artigos 3o n.° 1 al. f) e 2. do Estatuto do Ministério Público, 280° n°s 1 al. a) e 3 da Constituição da República Portuguesa e 70° n.° 1 al. a), 71° n.° 1, 72° n.° 1 e 3 e 75°-A n.° 1 da Lei n°28/82, de 15.11

41. Este recurso "tem em vista a apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes nos artigos 46°, n° 1, alíneas a) e c) e n° 7 do Decreto n° 2-C/2020 de 17 de abril, cuja aplicabilidade foi recusada no referido despacho (...) ".

42. Os parâmetros de constitucionalidade cuja violação se invoca são os constantes do "(...) artigo 165°, n° 1, al. c) e artigo 29° ambos da Constituição da República Portuguesa".

43. Conforme resulta, inequivocamente, do teor da douta sentença recorrida, acabada, nas partes relevantes, de transcrever, decidiu a Mm.a Juíza "a quo " "(...) desaplicar a Norma prevista no Artigo 46, número 7, do decreto 2C/2020 de 17/04, face à sua inconstitucionalidade orgânica e formal por violação no disposto nos artigos 165.º número 1, alínea c, e 29 número 1, ambos da Constituição da República Portuguesa

44. A questão jurídico-constitucional suscitada pelo tribunal "a quo" na douta decisão recorrida, e que agora é trazida perante o Tribunal Constitucional, decorre da ponderação de uma das inúmeras vertentes do quadro normativo que emergiu da necessidade de combater a pandemia de COVlD-19 causada pelo novo Coronavírus, SARS-CoV-2.

45. No cenário de tal combate, e face ao agravamento da ameaça pandémica, declarou o Exm.° Sr. Presidente da República, por via do Decreto do Presidente da República n.° 14-A/2020, de 18 de Março, o estado de emergência, declaração que veio a ser renovada através da emissão do Decreto do Presidente da República n.° 17-A/2020, de 2 de Abril, e, posteriormente, pela do Decreto do Presidente da República n.° 20-A/2020, de 17 de Abril.

46. À semelhança do que ocorrera com os dois primeiros decretos do Presidente da República (com a publicação do Decreto n.° 2-A/2020, de 20 de Março e do Decreto n.° 2-B/2020, de 2 de Abril) o Governo, por intermédio do seu Decreto n.° 2-C/2020, de 17 de Abril, procedeu à regulamentação da referida prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

47. Na verdade, a norma contestada agravou em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, na parte aqui relevante, o sancionamento da "desobediência (...) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto tendo o Governo, consequentemente, criado ex novo sem autorização da Assembleia da República, uma distinta moldura penal para o crime de desobediência quando praticado nos termos nela previstos.

48. A matéria sobre a qual o Governo legislou no referido n.° 7, do artigo 46.°, do Decreto n.° 2-C/2020, de 17 de Abril, é, indubitavelmente, do domínio da definição de penas e dos respetivos pressupostos e, por isso mesmo e por força do previsto na alínea c), do n.° 1, do artigo 165.°, da Constituição da República Portuguesa, matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

49. Ora, a Assembleia da República não autorizou, em qualquer momento relevante, o Governo a legislar sobre o agravamento da pena aplicável ao crime de desobediência, designadamente quando resultante da "desobediência (...) às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decretou, ou seja, quando praticadas em violação de normas contidas no decreto de regulamentação da primeira prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República.

50. Assim, torna-se evidente ter o Governo legislado sobre matéria excluída da sua competência constitucional, em violação do disposto no já mencionado artigo 165.°, n.° 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o que consubstancia, à partida, uma inconstitucionalidade orgânica porque violada uma norma de competência.

51. Dito isto, cumpre-nos apurar se, ainda assim, poderia o Governo ter legislado sobre a referida matéria sem ofender a Constituição, atento o contexto jurídico- constitucional conformado pelo Decreto do Presidente da República n.° 20- A/2020, de 17 de Abril, que declarou o estado de emergência.

52. Acontece que, a Constituição da República Portuguesa é inequívoca ao prescrever no n.° 7 do seu artigo 19.° que "[a] declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade...

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