Acórdão nº 519/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Lino Rodrigues Ribeiro
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 519/2022

Processo n.º 533/22

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B., o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC).

Por acórdão datado 9 de julho de 2021, o arguido foi – para o que aqui mais releva – condenado na 1.ª instância pela prática de quatro crimes de importunação sexual agravada, p. e p. pelos artigos 170.º e 177.º, n.º 1, alínea b), in fine, do Código Penal, um crime de coação sexual agravada na forma tentada, à data p. e p. pelos artigos 163.º, n.º 1, 22.º, 23.º e 177.º, n.º 1, alínea b), in fine, do Código Penal, um crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea b), in fine, do Código Penal e um crime de coação, p. e p. pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena única conjunta de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova, com a obrigação da frequência de programa de reabilitação para agressores sexuais; bem assim nas penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de cinco anos; e de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de cinco anos, previstas respetivamente nos artigos 69.º-B, n.º 2, e 69.º-C, n.º 2, do Código Penal.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que o julgou totalmente improcedente por acórdão datado de 7 de fevereiro de 2022.

Ainda inconformado, o arguido arguiu a nulidade desse acórdão por omissão de pronúncia, tendo o mesmo Tribunal da Relação indeferido essa arguição de nulidade por acórdão datado de 4 de abril de 2022.

2. O arguido interpôs então recurso de constitucionalidade, que apresenta o seguinte teor:

«A., Arguido no processo supra referido, não se conformando com o acórdão de fls. ... datado de 4 de abril de 2021, proferido por esse Venerando Tribunal que decidiu indeferir a arguida nulidade, vem, junto de V. Exas., ao abrigo alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82 de 15 de novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional,

A)

O recorrente pretende que seja apreciada a constitucionalidade dos artigos 412º, n.º 3, alínea a) conjugado com os artigos 431º, alínea b) e 425º, n.º 4, todos do CPP, na interpretação/entendimento que lhe é dada pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, segundo o qual, havendo impugnação da matéria de facto, a efetiva reapreciação dos pontos da matéria de facto cuja sindicância foi pedida, através dos meios de prova transcritos, basta-se com a enunciação de princípios processuais ou baseada apenas na fundamentação da sentença recorrida, com transcrição de excertos da mesma, viola o disposto nos artigos 18º e 32º, n.º 1 da C.R.P., (o direito ao recurso e o princípio da presunção de inocência) sendo, por isso materialmente inconstitucional, e fere o disposto em Convenções Internacionais a que Portugal aderiu, maxime o artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

A única interpretação compatível com a Constituição da República Portuguesa é aquela segundo a qual, havendo impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação teria que proceder a uma efetiva reapreciação dos pontos da matéria de facto cuja sindicância foi pedida, através dos meios de prova transcritos, não bastando tecer comentários sobre princípios processuais ou baseados apenas na fundamentação da sentença recorrida, daí que esteja vedado às relações refugiarem-se em considerações genéricas sobre a apreciação da prova, sem analisar em concreto as razões da impugnação, inutilizando desse modo aquele direito dos sujeitos processuais.

Neste sentido veja-se, in www.dgsi.pt, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 17 de maio de 2007, ou Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 23 de novembro de 2006.

B)

O recorrente pretende que seja apreciada a constitucionalidade do artigo 127º do Código de Processo Civil Penal conjugado com o artigo 374º, n.º 2 do CPP, na interpretação/entendimento que lhe é dada pelo Tribunal de 1ª Instância e mantida Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, segundo o qual, é suficiente para se entender cumprido o normativo do artigo 374º, n.º 2 do CPP, que a convicção do Juiz julgador assente exclusivamente no depoimento da Assistente (a aceitação total do depoimento da Assistente, com a consequente exclusão de tudo o que o contradiga ou o ponha em dúvida) - único elemento probatório não corroborado por qualquer outro elemento externo de prova, de forma a concluir pela afirmação de que existe prova de que os factos ocorreram tal como descritos na acusação, e que a dita prova ultrapassa a barreira da presunção de inocência, alcançando o estádio de certeza judicial exigível para uma condenação penal, viola o disposto nos artigos 18º, 32º, n.º 1, e 205º da C.R.P., (o direito ao recurso e o princípio da presunção de inocência) sendo, por isso materialmente inconstitucional

A única interpretação compatível com a Constituição da República Portuguesa é aquela segundo a qual, o comando contido no artigo 127º do Código de Processo Penal determina que o juiz deve apreciar a prova "segundo as regras da experiência e a livre convicção" e isso não corresponde a uma livre discricionariedade na apreciação da prova, não se trata aqui de ressuscitar o modelo de arbítrio judicial, o exame crítico funciona como limite ao princípio da livre convicção probatória que emerge da oralidade e acautela a discricionaridade do julgador, legitimando o poder judicial, acautelando os interesses a prosseguirem processo penal.

Neste sentido veja-se, in www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 21 de janeiro de 2020, processo n.º 4604/15.9T9STB.E1.

Como se decidiu no acórdão do STJ de 24.10.2012, proc. n.º 2965/06.0TBLLE.E1 «o dever de fundamentação da decisão começa e acaba, nos precisos termos que são exigidos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida».

Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira «...o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito Democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objeto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso» - [cf. "Constituição da República Portuguesa Anotada", 2.º vol., 3.a edição, Coimbra Editora, pp. 798/799].

As supra identificadas questões de inconstitucionalidade em A), e B) foram previamente suscitadas pelo recorrente, junto do Tribunal da Relação de Guimarães, tanto na motivação do recurso interposto, como no requerimento de arguição de nulidade do Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.

Assim, porque a causa o admite, está em tempo e tem legitimidade, deverá ser admitido o recurso para o Tribunal Constitucional

3. Através da Decisão Sumária n.º 390/2022, entendeu-se que o objeto do recurso não poderia ser conhecido, por não se acharem preenchidos inúmeros dos seus pressupostos de admissibilidade. Foi a seguinte a fundamentação apresentada:

«4. O recorrente vem solicitar a fiscalização da constitucionalidade: (i) «dos artigos 412º, n.º 3, alínea a) conjugado com os artigos 431º, alínea b) e 425º, n.º 4, todos do CPP, na interpretação/entendimento que lhe é dada pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, segundo o qual, havendo impugnação da matéria de facto, a efetiva reapreciação dos pontos da matéria de facto cuja sindicância foi pedida, através dos meios de prova transcritos, basta-se com a enunciação de princípios processuais ou baseada apenas na fundamentação da sentença recorrida, com transcrição de excertos da mesma»; e (ii) «do artigo 127º do Código de Processo Civil Penal conjugado com o artigo 374º, n.º 2 do CPP, na interpretação/entendimento que lhe é dada pelo Tribunal de 1ª Instância e mantida Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, segundo o qual, é suficiente para se entender cumprido o normativo do artigo 374º, n.º 2 do CPP, que a convicção do Juiz julgador assente exclusivamente no depoimento da Assistente (a aceitação total do depoimento da Assistente, com a consequente exclusão de tudo o que o contradiga ou o ponha em dúvida) - único elemento probatório não corroborado por qualquer outro elemento externo de prova, de forma a concluir pela afirmação de que existe prova de que os factos ocorreram tal como descritos na acusação, e que a dita prova ultrapassa a barreira da presunção de inocência».

Como de pronto se constata, o objeto do recurso não apresenta o necessário teor normativo. É consabido que os recursos de constitucionalidade devem forçosamente versar sobre normas, pressuposto este que se destina a delimitar a competência do Tribunal Constitucional em face da das outras ordens jurisdicionais (cf. e.g. o Acórdão n.º 361/98), impedindo a fiscalização concreta da constitucionalidade de resvalar numa sindicância das decisões dos tribunais judiciais enquanto tais – ou seja, numa apreciação dos concretos termos em que aí foram aplicadas certas normas de direito ordinário (cf. e.g. o Acórdão n.º 466/2016). Num recurso como o presente, a competência do Tribunal Constitucional traduz-se, única e exclusivamente, em apreciar a possível desconformidade de uma determinada norma de direito ordinário com a Constituição.

Contudo, as...

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