Acórdão nº 192/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução17 de Março de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 192/2022

Processo n.º 955/2020

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários («CMVM») e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei Orgânica n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante designada «LTC»), de dois acórdãos daquele Tribunal. O primeiro, de 27 de fevereiro de 2020, julgou inadmissível o recurso de revista interposto para aquele Tribunal pela ora recorrente. O segundo, de 29 de setembro de 2020, indeferiu a reclamação apresentada pela CMVM, mantendo aquela decisão.

Estas decisões foram proferidas no âmbito de um incidente de quebra de segredo profissional, requerido pelo ora recorrido contra a CMVM, que correu por apenso a uma ação cível com a forma de processo comum. O Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se em primeira instância sobre o incidente, julgando-o procedente, tendo a recorrente interposto recurso de apelação deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça.

O recurso de apelação não foi admitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou, por um lado, que o acórdão da Relação apenas poderia ser objeto de recurso de revista, ao abrigo dos artigos 671.º a 673.º do Código de Processo Civil (doravante CPC, aplicável aos autos por se tratar de ação cível), e, por outro, que a revista também não poderia ser admitida «por estar em causa uma decisão sobre um incidente e a Recorrente não ter invocado fundamento passível de ser reconduzido ao disposto no nº 2 do artigo 671.º do C.P.C.»

A CMVM reclamou desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos previstos no artigo 643.º, n.º 1, do CPC, tendo a reclamação sido julgada procedente e o recurso admitido como apelação, uma vez que «o incidente [sob apreciação] é da competência decisória em 1ª instância do tribunal da Relação: art. 135º, 3, CPPenal, por força da remissão do art. 417º, 4, do CPC» e que «o recurso de apelação interposto observa os requisitos de impugnação previstos nos arts. 644º, 1, a), e 629.º, 1, CPC (…) não tendo que ser aferida a sua admissibilidade como revista de acordo com os arts. 671º e ss do CPC.»

Requisitado o processo principal nos termos previstos no artigo 643.º, n.º 6, do CPC, o coletivo de juízes do Supremo Tribunal de Justiça foi chamado a pronunciar-se sobre o objeto do recurso e, tendo entendido que deveria começar por verificar, a título de questão prévia, se se encontravam reunidos respetivos pressupostos de admissibilidade, concluiu em sentido negativo, julgando findo o recurso. Foi, essencialmente, sobre esta questão que versaram os acórdãos de que vem interposto o presente recurso.

2. No acórdão de 27 de fevereiro de 2020, ficando vencido o relator originário, a maioria julgou inadmissível o recurso, essencialmente, pelas seguintes razões:

«Porque as questões postas na revista dependem, logicamente, da resolução do problema relativo à admissibilidade do recurso, há que sobre a mesma conhecer previamente(…).

Começamos esta apreciação fazendo apelo ao Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 5-7-2018, Proc. 842/11.1TBVNO-B.E1-A.S1, em www.dgsi.pt, do qual se retira o seguinte enxerto: “ A delimitação do recurso de revista é regulada pelo art. 671º do CPC, norma da qual não deriva a possibilidade de ser impugnada por essa via o acórdão da Relação proferido no âmbito de um qualquer incidente da instância, mas apenas de acórdão da Relação que conheça do mérito da causa ou ponha termo total ou parcial ao processo.

Não existe motivo algum para excecionar desse regime o incidente de quebra de sigilo, como, aliás, tem sido uniformemente decidido por este mesmo Supremo Tribunal de Justiça, sendo disso exemplos os Acs. de 17-6-10, CJ, t. II, p. 113 e de 12-7-05, 05B1901, www.dgsi.pt. O mesmo se decidiu também, num caso que foi suscitado no âmbito de processo penal, na decisão sumária de 16-10-14, 1233/13, www.dgsi.pt.

Efetivamente a quebra de sigilo requerida no âmbito de qualquer processo é requerida perante a Relação, nos termos do art. 417º, nº 4, do CPC, por via do regime previsto no art. 135º do CPP.

Mas não passa de um incidente inscrito no âmbito da instrução da causa, não havendo motivo algum passa assimilar a respetiva decisão a alguma das previstas no art. 671º, nº 1, do CPC.

Por outro lado, não existe qualquer base constitucional para a exigibilidade de um duplo grau de jurisdição nesta matéria, possibilidade que apenas está prescrita relativamente ao processo penal que nenhuma relação tem com o caso concreto.”

(…)

Alega o recorrente que O Tribunal da Relação funcionou como primeira instância de decisão quanto à quebra do segredo profissional da CMVM, pondo termo ao incidente. – cfr. conclusão 2. –

Dispõe o art. 644º, nº1, al. a) que 1 - Cabe recurso de apelação: a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente.

Fazendo apelo à referida norma, constata-se que a decisão recorrida não pode ser tida como uma decisão proferida em 1ª instância pela Relação, já que ela não possui as aludidas características por resultar de um incidente levantado no âmbito de um processo comum a correr termos na 1ª instancia e que, por disposição processual especial, corre termos na 2ª instancia para efeitos de decisão – cfr. art. 135º nº 3 do Código de Processo Penal e nº4, do art. 417º, do Código de Processo Civil.

Com efeito, o incidente em questão está regulado nos nºs 2 e 3 do referido artº135.º, distinguindo dois momentos de tramitação que respondem a duas questões distintas: i) a determinação da legitimidade da escusa; ii) entendendo-se que a escusa é legítima, o levantamento (oficioso ou a requerimento) do incidente com a intervenção do tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado.

Ou seja, a questão da legitimidade da invocação do segredo é da competência da autoridade judicial onde o incidente surgiu. A decisão sobre a quebra do segredo é da competência do tribunal que lhe for superior. A quebra do segredo surge, assim, na sequência de uma ponderação que começa na 1ª instancia e termina na 2ª instância.

As decisões que a Relação profere em primeira instância são as decisões em que a Relação funciona como tribunal de primeira instância, ou seja, quando exerce uma competência que por regra é cometida à primeira instância e excecionalmente, designadamente em atenção à qualidade do arguido ou de uma parte, se atribui à Relação.

Na realidade, no caso em apreço, estamos perante um incidente de estrutura especial, que não segue as regras normais de competência jurisdicional, por atribuir competência para a sua decisão ao tribunal que seria, segundo a regra geral, competente para a apreciação do recurso sobre ela.

Num quadro de conflito de interesses que se suscita em sede de oferecimento e de produção de prova, cuja resolução de modo célere se impõe em termos instrumentais à decisão da causa, a lei, ao estruturar o incidente em análise, pretendeu que da respetiva decisão não houvesse recurso. Para tanto, em postura de salvaguarda do interesse das partes numa melhor apreciação do objeto do incidente, atribuiu a lei a competência para a respetiva decisão ao tribunal que seria competente para conhecer da matéria em via de recurso se o objeto do incidente tivesse sido decidido na instância em que foi suscitado ou implementado.

Assim, neste peculiar incidente, sob a necessidade da celeridade da decisão e da natureza meramente instrumental dos interesses em conflito, consignou-se pela referida via implícita, a proibição da instância de recurso, contrabalançada pela atribuição da competência decisória ao tribunal hierarquicamente superior àquele onde o incidente foi suscitado.

Assim, resulta da estrutura do incidente em causa que a Relação decide em definitivo o respetivo objeto, ou seja, da decisão por ela proferida não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça 3 [3Neste sentido o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 12-[7]-2005, Proc. 05B1901, em www.dgsi.pt].»

Nesta conformidade, não sendo admissível revista, fica prejudicada a apreciação de mérito suscitada.»

3. Inconformada com esta decisão, a ora recorrente arguiu a respetiva nulidade, invocando inter alia a inconstitucionalidade da «interpretação das normas contidas no artigo 3.º, n.ºs 1 e 3, em conjugação com os artigos 643.º, n.º 4, e 652.º, nº 3, todos do CPC, no sentido de admitir que o Supremo Tribunal de Justiça altere a decisão anterior transitada em julgado dentro do processo sem dar à recorrente oportunidade de se pronunciar antes de proferir nova decisão sobre admissibilidade do recurso após decisão anterior de deferimento da Reclamação, por violação do direito a um processo equitativo (…) no qual se inclui o direito a ser ouvido ou direito ao contraditório.»

4. A arguição de nulidade foi indeferida pelo acórdão recorrido de 29 de setembro de 2020, tendo o Tribunal a quo concluído o seguinte:

«i) da ofensa de caso julgado.

No CPCivil de 1939 a impugnação do despacho de rejeição do recurso, era passível de um recurso de queixa a interpor para o Presidente do Tribunal hierarquicamente superior, o qual passou a ser extensível ao despacho que retivesse o recurso, cfr artigo 689º daquele diploma legal, cfr J.A.Reis, Código De Processo Civil Anotado, Volume V, reimpressão, 340/351.

Posteriormente, com a aprovação do CPCivil de 1961, eliminou-se aquela terminologia, passando a designar-se reclamação, e se o Presidente indeferisse a reclamação, a sua decisão era definitiva, artigo 689º, 11º2; se a deferisse, o processo baixava à instância recorrida para que fosse admitido o recurso ou mandasse subir o recurso retido...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT