Acórdão nº 601/19.3T9CBR.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 17 de Março de 2022

Magistrado ResponsávelJORGE JACOB
Data da Resolução17 de Março de 2022
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra: I – RELATÓRIO: Nos autos de processo comum (tribunal singular) supra referenciados, que correram termos no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., foi proferido despacho rejeitando a acusação pública deduzida contra o arguido AA por manifestamente infundada.

Inconformado, recorre o assistente BB, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões: 1.ª - Vem o presente recurso interposto do despacho datado de 11/07/2021, notificado ao aqui assistente em 15/07/2021 (Refª Citius ...), no qual foi determinada a rejeição da acusação pública deduzida nos presentes autos por manifestamente infundada, na medida em que estaria “votada ao insucesso”.

  1. - O recorrente não se conforma com o douto despacho porque entende que o Tribunal a quo errou quer no juízo decisório que fez sobre o mérito da acusação, quando verificou ter existido “uma omissão na alegação factual decisiva ao preenchimento dos elementos do tipo de crime em causa, de ofensa à integridade física negligente, ao nível subjectivo.” 3.ª - Resulta do n.º 1 do artigo 282.º do CPP que basta a existência de indícios suficientes da prática do crime, seja a que título for, o MP deve proferir acusação. In casu, esses indícios foram cabal e suficientemente explanados na acusação proferida, cabendo depois ao juiz de julgamento, após a produção de prova verificar se a matéria factual se encontra preenchida ou não.

  2. - O Tribunal a quo, fez uma apreciação factual da acusação pública sem ter produzido qualquer prova em sede de audiência de julgamento, isto é, não podia o Tribunal a quo ter feito um juízo sobre a atitude do arguido face à inobservância do dever de cuidado, sem o ter ouvido, e assim ter previsto que o mesmo não poderia prever que a sua conduta não poderia pôr em risco a segurança rodoviária dos utentes da estrada com a qual o seu terreno confina.

  3. - A Acusação Pública proferida pelo MP, contém todos os requisitos previstos legalmente, bem como fundamentou bem tipo legal de crime quanto ao tipo objectivo e subjectivo de ilícito.

  4. - O conceito de “acusação manifestamente infundada” faz-se por referência aos casos previstos nas alíneas a), b), c) e d) do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, correspondentes a vícios extremamente graves da acusação, e que de forma irremediável a tornam inútil para os fins a que se destina.

  5. - No caso vertente temos a imputação objectiva de um crime de ofensa à integridade física e a imputação subjectiva a título de negligência, tendo os factos resultado de uma “conduta imponderada, descuidada e omissiva do arguido” 8.ª - O Tribunal a quo peca quando retira a conclusão de que não era exigível ao arguido, segundo as circunstâncias a que estava obrigado, tomar providências para impedir que o seu sistema de rega ao projectar água para a via pública não viesse a causar qualquer tipo de acidentes como o que efectivamente sucedeu.

  6. - No entanto era de facto exigível esse dever de cuidado por parte do arguido, pelo que claramente a matéria factual indiciada na acusação faz concluir, tal como bem concluiu o MP, que o crime resultou de uma conduta omissiva do arguido.

  7. - Sendo mais que manifesto que o arguido não agiu de acordo “com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que era capaz”, não merecendo assim a Acusação Pública qualquer censura que a torne manifestamente infundada.

Nestes termos, e nos melhores de direito, que V. Exas. superiormente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido, julgado totalmente procedente, por provado, e, em consequência, ser anulado o despacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação e determine o prosseguimento dos autos até ao final.

O M.P., na sua resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso, concluindo que a redacção dada ao artigo 7º da acusação não descreve devidamente a negligência ou elemento subjectivo da negligência, tal como nos é imposto pelo artigo 15º do CP, isto é, nas suas dimensões de ilícito e de culpa, sendo aplicável ao caso a doutrina do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015.

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer acompanhando a posição do M.P. em 1ª instância, considerando, no entanto, não dever ser determinado o arquivamento dos autos, antes se concedendo a possibilidade de ser deduzida nova acusação pelo assistente, reportando-se ao decidido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/2017 [1].

Foram colhidos os vistos legais.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente há que conhecer do seguinte: - Deveria a acusação deduzida ter sido recebida, por dela constarem todos os elementos necessários? - Sendo ajustada a sua rejeição, não se deveria ter determinado o arquivamento dos autos, antes se concedendo ao assistente a possibilidade de dedução de nova acusação? II – FUNDAMENTAÇÃO: Da acusação rejeitada consta o seguinte: 1. No dia 24 de Julho de 2018, pelas 22h55m, o denunciante BB circulava na via pública conduzindo o veículo de matrícula (…), na Estrada ..., km (…), no sentido (…).

  1. O tempo estava nublado embora sem precipitação, havia pouco trânsito, e a estrada encontrava-se molhada, com algumas poças de água, causadas pela chuva daquela tarde.

  2. Quando o denunciante circulava ao lado da residência do arguido e sem que nada o fizesse prever, foi atingido, com violência, no capacete, por um jato de água pertencente ao sistema de rega do jardim do denunciado, que se encontrava virado para a estrada.

  3. O jato de água atingiu o denunciante fazendo-o perder o equilíbrio do ciclomotor, tendo ido embater, com bastante violência, na barreira da berma da estrada.

  4. Por força do embate o denunciante caiu de forma abrupta e violenta no chão, batendo com os punhos e joelhos num primeiro instante e posteriormente com a cabeça.

  5. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido o ofendido sofreu dores, que determinaram um período de 5 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e com afectação da capacidade de trabalho académico e profissional de 3 dias.

  6. O denunciado sabia que tinha o dever de cuidado de assegurar que o seu sistema de rega não impedia a normal circulação do trânsito na Estrada ....

  7. Da actuação imponderada, descuidada e omissiva do arguido, resultou o embate descrito, originando a ofensa à integridade física no corpo de BB.

  8. Sabia ainda a arguida que a sua conduta era proibida e punível por lei.

    Pela factualidade supra descrita, o arguido praticou, assim, um crime de ofensa à integridade física negligente, na forma consumada previsto e punido, pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal.

    Por seu turno, o despacho recorrido tem o seguinte teor: O Tribunal é competente.

    O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.

    Concluído o inquérito, deduziu o Ministério Público acusação contra AA, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada, de crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido, pelo art.º 148.º, n.º 1 do Código Penal.

    Dispõe o artigo 311º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.

    O nº 2, al a) do citado preceito legal estatui que “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha nomeadamente no sentido: de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, entendendo-se como tal a acusação que, além do mais, “não contenha a narração dos factos” e “se os factos não constituírem crime” (cfr. nº 3, als. b) e d) do citado preceito legal).

    Dispõe por sua vez o art. 283º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (...)”.

    Como é sabido, vigora no nosso sistema o princípio do acusatório, que, na sua essência, significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento.

    Tal princípio implica que a acusação seja uma peça auto-suficiente, ou seja, que contenha a totalidade dos elementos que revelam “a existência de um crime” e identificam “os seus agentes e a responsabilidade deles”, na formulação do n.º 1 do artigo 262.º do Código de...

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