Acórdão nº 1854/13.6TVLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Novembro de 2021

Magistrado ResponsávelMARIA DA GRAÇA TRIGO
Data da Resolução30 de Novembro de 2021
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA intentou contra Herdeiros Incertos de BB, Herdeiros Incertos de CC, Herdeiros Incertos de DD, EE e mulher FF, GG, Herdeiros Incertos de HH, II, e JJ, a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que seja reconhecida a aquisição pela A. da propriedade da quota parte do imóvel sito na Travessa da ..., n.º ..., em ..., na área correspondente ao ... do mesmo, por efeito de usucapião.

Alegou, em síntese, que: - O seu marido KK, já falecido, era empresário e dedicava-se ao comércio de antiguidades; - Em 1987, foi-lhe proposta a aquisição do imóvel, proposta apresentada por um dos proprietários do imóvel, LL; - A partir de Outubro de 1987, o marido da A. começou a celebrar acordos de venda, em que o preço era pago de imediato e as partes declaravam a disponibilidade para formalizar posteriormente a transmissão; - Até Junho de 1994, o marido da A. havia pago aos proprietários do imóvel uma quantia correspondente a 67,535% do valor acordado inicialmente; - Antes de 1989, o marido da A. instalou-se no ... do imóvel; - Passando a ter aí um local de escritório e de guarda dos seus objectos de comércio de antiguidades e tendo preparado uma divisão para servir para dormitar; - Custeou as obras de alteração da coluna de electricidade do imóvel e celebrou contratos de abastecimento de água e de fornecimento de electricidade, bem como de instalação de telefone fixo, referente ao ...; - A partir de 2006, após a morte do seu marido, a A. manteve a posse da fracção, mantendo no imóvel os bens que aquele ali havia armazenado; - Quer o marido da A., quer a A., sempre exerceram a posse de forma correspondente à propriedade plena, utilizando de forma plena o imóvel, sem qualquer constrangimento, de forma totalmente pública e pacífica.

Contestaram os RR. EE e mulher, FF e GG, impugnando a matéria de facto alegada pela A. e invocando designadamente: - Que o ... referido esteve sempre encerrado, aparentando estar abandonado, com ar sujo e poeirento; - Que o marido da A. tornou-se amigo da antiga fruidora do ... - HH - e de MM, sendo que aquela lhe facultou o acesso e lhe deu uma chave do ..., a título gracioso mas precário. Após o falecimento de HH, em 1996, o marido da A. intrometeu-se no ..., usando-o como armazém de velharias, mas actuando sempre de noite e às ocultas dos demais comproprietários.

A R. JJ contestou, invocando a excepção de ilegitimidade passiva, porquanto recebeu a herança com a obrigação de a conservar para o seu neto NN, pelo que o mesmo deveria ser chamado a intervir nos autos. Impugnou ainda a matéria de facto alegada pela A., alegando, em suma, que: - O marido da A. se tornou amigo da antiga fruidora do ... - HH - e de MM, sendo que aquela lhe facultou o acesso e lhe deu uma chave do ..., a título gracioso mas precário. Após o falecimento de HH, em 1996, o marido da Autora intrometeu-se no ..., usando-o como armazém de velharias, mas actuando sempre de noite e sem o conhecimento dos outros comproprietários; - O ... do prédio em apreço esteve sempre encerrado, aparentando estar abandonado, sujo e poeirento, estando as portas e janelas sempre fechadas.

Foi citado o Ministério Público, em representação de Herdeiros Incertos de BB, Herdeiros Incertos de CC, Herdeiros Incertos de DD e Herdeiros Incertos de HH.

Notificada para o efeito, a A. respondeu à excepção invocada pela R. JJ.

Por despacho de 26/06/2017 (fls. 344), foi a A. notificada a providenciar pelo suprimento da excepção e, nessa sequência, requereu a intervenção principal provocada de NN, a qual foi admitida, conforme despacho de 25/09/2017 (fls. 358).

Por sentença de 4 de Outubro de 2018 (fls. 419) foi proferida a seguinte decisão: »Tendo em atenção as considerações expendidas e as normas legais citadas, julga-se a acção improcedente, por não provada e, em consequência absolve-se os Réus HERDEIROS INCERTOS DE BB, HERDEIROS INCERTOS DE CC, HERDEIROS INCERTOS DE DD, EE e mulher FF, GG, HERDEIROS INCERTOS DE HH, II, JJ e do interveniente principal NN do pedido formulado pela Autora AA.

Custas pela Autora, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.º l e n.º 2 do Código de Processo Civil.» Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de ..., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por morte do R. EE foi deduzido incidente de habilitação de herdeiros, que correu termos, vindo a ser habilitados, por decisão de 18 de Março de 2019, os seus herdeiros FF, OO e PP para ocupar o seu lugar na presente acção.

Por acórdão de 24 de Outubro de 2019, foi proferida a seguinte decisão: «Nos termos supra expostos, acordam conceder provimento parcial ao recurso e em consequência revogam a sentença recorrida, a qual substituem por este acórdão que julga a acção parcialmente procedente, reconhecendo e declarando a aquisição pela Autora, por usucapião, da propriedade da quota parte correspondente a (19) dezanove avos do imóvel sito na Travessa da ..., n.º ..., em ....

Custas pela recorrente e pelos recorridos, na proporção de 10% para a recorrente e de 90% para os recorridos.» 2.

Desta decisão do Tribunal da Relação interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça: a Autora; os RR. FF, OO e marido QQ, e PP; os RR. JJ e NN; e o R. II.

Os recursos foram admitidos por despacho do relator do tribunal a quo de 25.02.2020, vindo a ser remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça por ofício de 04.06.2020.

Por determinação de despacho da relatora de 14.09.2020 foi solicitado esclarecimento sobre a identificação do recurso interposto por II, uma vez que tal identificação surgia em dois recursos distintos. A dúvida foi esclarecida por este Recorrente em 30.09.2020.

No recurso da A.

formulam-se as seguintes conclusões: «1. O acórdão recorrido faz coincidir a aquisição por usucapião apenas à área a que se referem os documentos a que se referem os pontos 9 e 10 da matéria provada, que formalizava a intenção de transmissão a favor do marido da Recorrente de 1/19 avos na compropriedade do prédio, com pagamento de preço; 2. Ainda nos termos do acórdão recorrido, a posse do ... e logradouro, na parte em que possa ter excedido a quota de 1/19, subsume-se ao regime do artigo 1406.º/1 e 2, presumindo-se ter ocorrido posse de coisa comum, por não ter ocorrido a inversão da posse.

  1. Salvo o devido respeito, que é muito, entende-se que esta conclusão padece de vício, face à matéria de facto assumida.

  2. A Recorrente desconhece a quota-parte do prédio a que corresponde a área por si utilizada, mas, face ao facto de o prédio ter cinco andares, admite que a área do ... e logradouro seja superior a 1/19 do prédio.

  3. Ficou provado que a Recorrente e o seu falecido marido utilizaram o ... e o logradouro de forma exclusiva a partir de 1990.

  4. Que o ... tinha acesso exclusivo ao logradouro 7. Isto é, nenhum dos vizinhos do prédio podia, mesmo querendo, aceder à área utilizada pelo marido da Recorrente e pela Recorrente – a única vez que o fizeram, foi por arrombamento da porta do andar, conforme factos assentes no procedimento cautelar.

  5. Duas questões se colocam: 9. - se, face à natureza da usucapião, que decorre de uma posse efectiva de um bem, neste caso imóvel, será possível delimitar um perímetro de aquisição que releve a efectiva ocupação e remeta para um determinado documento; 10. - se ainda que assim seja, e admitindo a utilização de um bem comum, nos termos do artigo 1406.º/2, se não deveria, face ao que foi a efectiva posse do imóvel por parte da Recorrente e do seu marido, admitir que tal ocupação consubstanciou uma inversão do título Da conformação do direito adquirido por via da usucapião pela posse subjacente 11. Em relação à primeira questão deve dizer-se decorrer do delinear da figura de usucapião que esta se constitui a partir de uma situação fáctica, isto é, a posse, exercida de forma correspondente a um determinado direito, durante um determinado tempo.

  6. O douto acórdão recorrido, reconhecendo embora a aquisição fá-la apenas repercutir-se sobre um parte do prédio, delimitada em função de um documento que, no decurso da posse foi elaborado, mas que (sem prejuízo da relevância probatória fundamental que lhe é dada e que não se impugna) em nada alterou na situação fáctica subjacente.

  7. A usucapião não poderá deixar de se referir à exacta medida do modo como a posse foi exercida, não sendo relevantes limitações documentais que em nada relevam para a definição do âmbito do direito adquirido por via da usucapião.

    Da inversão do título da posse da área comum (1406.º/2 do CC) 14. Ainda que assim não seja, e sem conceder, admitindo-se que a área adquirida por via da usucapião se confina a 1/19 do prédio, tendo a área remanescente sido detida como coisa comum, será relevante apurar se, face ao modo como o imóvel foi usado, não se deverá admitir ter ocorrido a inversão do título para os efeitos previstos no artigo 1406.º/2.

  8. Salvaguardado o devido respeito, entende-se que sim.

  9. É pressuposto da aquisição por usucapião – que se reconhece ter ocorrido - a exacta actuação do agente como titular do direito de propriedade, sem ambiguidades – cfr. artigo 1287.º/1 do CC.

  10. Pelo que, de algum modo, reconhecer-se a aquisição por meio de usucapião implica, por maioria de razão, reconhecer que o modo de utilização de parte “comum” configurou uma verdadeira inversão do título.

  11. Assim, será forçoso concluir que a posse do imóvel no modo e pelo tempo que existiu, tem ínsita a inversão do título nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1406.º/2 do CC.

  12. Pelo que se conclui que, se nada há a dizer relativamente à motivação do douto acórdão recorrido quanto à conclusão da aquisição pela usucapião, deveria ser diferente o âmbito do direito cuja constituição se reconheceu, determinando a aquisição de uma quota idêntica à área correspondente ao ... e jardim.

  13. Decidindo como decidiu, o douto acórdão recorrido violou o disposto no...

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