Acórdão nº 5765/17.8T8LRS.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 08 de Junho de 2021

Magistrado ResponsávelMARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Data da Resolução08 de Junho de 2021
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, I - Relatório 1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Estado Português, representado pelo Ministério Público.

  1. Alegou, essencialmente, que: - comprou uma casa sita no n.º …. da Rua …, do Bairro …, em …., concelho …., sendo composta de R/C, com cinco divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho e uma garagem, tendo uma superfície coberta de 100 m2 e um logradouro de 340 m2, a que corresponde o artigo matricial urbano …., da União de Freguesias …., ….. e ……; - tal compra foi feita pela Autora a BB, representante da Sociedade J... ., S.A.R.L., que a havia construído para dar apoio à construção do referido bairro ….., tendo sido pago o preço de 600.000$00; - por dificuldades burocráticas várias, designadamente a falta de descrição do prédio na Conservatória do Registo Predial, e apesar das várias diligências levadas a cabo, não se logrou fazer a respetiva escritura pública de compra e venda nem efetuar o registo da aquisição a favor da Autora; - mas, desde 1979 até hoje, a Autora tem atuado como única e exclusiva dona do prédio em apreço.

  2. Conclui, pedindo: a) a título principal: que seja declarado que a Autora adquiriu a propriedade do prédio identificado no art. 3.° da p.i. por usucapião, dele sendo dona e legítima possuidora, pelo menos a partir do termo do prazo de trinta anos a contar da data em que para ele foi morar, em 1982; b) a título subsidiário: que seja reconhecido o direito da Autora de adquirir a propriedade da totalidade do prédio supra identificado, a título de acessão industrial imobiliária, pagando o montante de € 5.830,00, ou outro que vier a ser definido por avaliação, direito esse ora exercido através desta ação.

  3. O Ministério Público, em representação do Réu Estado Português, contestou. Alegou, essencialmente, que: - aceita efetivamente, que em 1979 a casa foi cedida à Autora, pelo preço então acordado, e que esta a ocupou à vista de toda a gente desde 1979 até 1990; - a Autora adotou várias diligências no sentido de tentar registar em seu nome o direito de propriedade, tendo apurado que a casa foi construída em terreno pertencente ao IHRU, I.P. (Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana), ao qual sucedeu o IGHAPE (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado), que, por sua vez, havia sucedido ao Fundo de Fomento da Habitação; - a Autora intentou contra o IHRU, I.P., ação ordinária com o n.º 184/08……, que correu termos na extinta …..ª Vara Mista de …., na qual pediu que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o terreno indicado na p.i.. O Réu contestou e deduziu reconvenção, na qual pediu que lhe fosse reconhecida a propriedade do referido terreno. Por sentença proferida a 13 de outubro de 2010, tal ação foi declarada procedente e provada, enquanto a reconvenção foi considerada improcedente. O Réu recorreu dessa decisão para o Tribunal da Relação …., que, por acórdão de 12 de maio de 2011, transitado em julgado, julgou parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, na parte em que considerou a ação procedente, absolvendo o Réu do pedido contra ele deduzido e mantendo a mesma no restante, relativamente à improcedência do pedido reconvencional.

    - invocou a exceção de ilegitimidade dizendo que o Réu Estado não é proprietário do imóvel em questão.

    - termina considerando que não estão presentes os pressupostos necessários à aquisição da propriedade por usucapião, nomeadamente quanto ao animus, pois a Autora sempre soube que não era proprietária do imóvel.

  4. Procedeu-se ao saneamento dos autos conforme fls. 163 a 164.

  5. Realizou-se audiência de julgamento e foi proferida sentença que julgou o pedido principal procedente e, em consequência, declarou que existe na esfera jurídica da Autora o direito de propriedade sobre o prédio urbano sito no n.º … de polícia, da Rua ….., do Bairro da …., em …., concelho de …, sendo composta de R/C, com cinco divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho e uma garagem, tendo uma superfície coberta de 100 m2 e um logradouro de 340 m2, a que corresponde o artigo matricial urbano …., da União de Freguesias de …., …. e …., direito esse adquirido por usucapião (cfr fls. 180 a 186).

  6. O Réu, representado pelo Ministério Público, interpôs recurso desta decisão, que foi admitido como de apelação.

  7. A Autora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

  8. Por acórdão de 3 de março de 2020, o Tribunal da Relação … decidiu o seguinte: “Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação interposta, revogando a decisão recorrida e absolvendo o Estado Português do pedido formulado contra ele por AA.

    Custas da apelação pela apelada”.

  9. Não conformada, a Autora interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões: “NÃO HÁ AUTORIDADE DO CASO JULGADO A. No acórdão recorrido, entendeu-se que, tendo a acção precedente julgado não estar preenchido o requisito do animus por parte da A., estaria definido um quadro jurídico essencial que não mais podia ser alterado, pelo que se estaria perante uma situação em que o pedido da A. não podia voltar a ser discutido, encontrando-se a coberto da autoridade do caso julgado, com força obrigatória dentro e fora do processo, nos termos do artigo 619.º do CPC.

    1. Acontece, porém, que não se verificam os requisitos do artigo 619.º do CPC para o efeito de se considerar a presente acção abrangida por tal autoridade do caso julgado, por duas ordens de razão incontornáveis: • Primeiro, porque não há identidade de sujeitos, uma vez que, embora a A. seja a mesma, na primeira acção, o R. foi o IHRU, enquanto nesta, o R. é o ESTADO PORTUGUÊS; • Segundo, porque não há identidade de causa de pedir, uma vez que, nesta acção, o núcleo fáctico de que emerge o pedido é diferente, quer quanto ao prazo da posse (agora, está em causa um prazo de 30 anos), quer quanto à natureza do prédio (agora, está expressamente invocado que tal prédio não faz parte do domínio público do Estado), quer quanto à própria caracterização do animus, que nesta acção foi avaliada em relação a contornos factuais diferentes dos que foram considerados na acção precedente.

    2. A identidade de sujeitos é requisito imprescindível, quer para a verificação do caso julgado, quer para a invocação de uma autoridade do caso julgado.

    3. Nesse sentido tem-se pronunciado alguma jurisprudência do STJ citada no corpo das alegações, podendo ainda consultar-se a posição de LEBRE DE FREITAS, no bem fundamentado artigo que escreveu para a ROA, sob o título “Um polvo chamado autoridade do caso julgado” (ano 79, Jul./Dez. 2019, III/IV, pág. 691 e seguintes), onde sublinha a importância do conceito de identidade de parte para o efeito de se considerar preenchida a tripla identidade prevista no artigo 581.º do CPC, para onde remete o artigo 619.º convocado pelo acórdão da Relação.

    4. In casu, não se verifica a identidade das partes nem o acórdão da Relação, aliás, o assim julga, uma vez que a discussão da matéria controvertida, relativa à posse da A., foi contestada nas duas acções por pessoas jurídicas distintas (IHRU e ESTADO PORTUGUÊS).

    5. Mas também não ocorre identidade de causa de pedir, como decorre, aliás, da sentença da 1.ª instância, uma vez que o núcleo factual ora em causa é distinto daquele que esteve em causa na primeira acção, porque: i) suprindo a falta que ocorrera na precedente acção, a A. veio expressamente invocar que o prédio em apreço não integrara o domínio público do ESTADO ou de uma entidade pública – cfr. artigo 23.º da PI, não impugnado –; ii) a posse ora em apreciação reporta-se a um período de trinta anos (por força do regime do artigo 1.º da Lei n.º 54, de 16/07/2013), o qual ainda não tinha decorrido aquando da primeira acção; iii) os termos em que está descrito o animus da A. são em parte diferentes dos que foram considerados na primeira acção, desde logo porque nesta acção foi julgado provado (o que não consta do probatório da anterior) que, na matriz predial respectiva, o prédio se encontra inscrito em nome da ora Recorrente (cfr. facto provado n.º 15), a que acresce o esclarecimento prestado quanto às diligências levadas a cabo pela A., tendo em vista a “legalização registral” do direito de propriedade, mas não a “legalização da aquisição” que, para ela, foi sempre um dado adquirido.

    6. E todos estes novos contornos da causa de pedir foram apreciados no âmbito da sentença proferida neste autos na 1.ª Instância (não o tendo sido na sentença de 1.ª Instância da acção precedente), devendo agora sublinhar-se (até porque parece ser esse o elemento fundamental em que se estriba o acórdão recorrido) a questão do animus, em que a sentença da 1.ª Instância – referindo expressamente que a situação fáctica diferia da que, na pretérita acção, a Relação considerara– teve precisamente a oportunidade de sublinhar o seguinte: i) por um lado, que a A. sempre se comportara como proprietária, não devendo confundir-se as diligências dirigidas à legalização registral do seu direito de propriedade com a legalização da aquisição que, para ela, sempre foi um dado adquirido; ii) por outro lado, que fora o próprio ESTADO a reconhecer a A. como proprietária do imóvel, quando aceitou a inscrição do mesmo em nome dela na matriz predial urbana, exigindo o pagamento dos impostos correspondentes ao direito de propriedade.

    7. De resto, estando em causa períodos temporais distintos – na primeira acção, debatia-se uma posse reportada a 15 anos de exercício, enquanto agora o período considerado é de 30 anos –, sempre se teria de concluir não haver identidade de causa de pedir, como, aliás, em situação análoga, também já decidiu o STJ em acórdão citado no corpo das alegações.

      I. Não há, pois, autoridade do caso julgado, tendo o acórdão recorrido convocado erroneamente o artigo 619.º do CPC, que ao caso não tem aplicação. Assim sendo, em face dos factos dados como...

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